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Cidade dos Sonhos: o século XXI entre pulsões de morte

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Passaram-se cinco meses desde que assisti Cidade dos Sonhos (2001) nos cinemas, em abril de 2025. Na ocasião, uma sala muito prestigiada pela cinefilia soteropolitana exibiu uma cópia remasterizada a partir dos negativos originais em 4K  —  tratava-se de um evento sem igual para qualquer um que tenha o cinema como uma paixão. A recente morte do autor do longa-metragem, David Lynch, ainda atribuía à sessão a honraria de homenagem póstuma a este que foi um dos maiores da sua geração de cineastas.


As luzes se apagam, então. O que vemos, no primeiro milésimo de segundo, já é estonteante: diversos casais dançam de um modo agitado, ocupam toda a tela com o fervor da dança jitterbug, típica dos Estados Unidos dos anos quarenta e cinquenta. Estes pares se misturam, pulam, se comportam como acrobatas  —  e, no fundo, há apenas um violeta sólido que se esvai à medida em que as sombras destas pessoas se projetam. Sombras estas que, inclusive, antecedem os próprios dançarinos  —  o oculto que revela o real logo a seguir.


Tudo isso é interrompido por flashes de uma jovem loira que emerge do nada: ela está radiante, seu rosto é iluminado por holofotes que destoam da iluminação austera nos casais  —  em pouco mais de um minuto, David Lynch conta uma fábula que une o velho ao novo. A Era de Ouro de Hollywood ao digital. Habemus século XXI.


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Não apenas nessa introdução reside o poder de Cidade dos Sonhos. A história de Betty, uma jovem atriz que sonha com o estrelato em Hollywood, é contada em paralelo às desventuras de um já consolidado diretor de cinema, Adam Kesher, que tem sua autoria ameaçada diante das imposições dos grandes chefões da indústria  —  figuras estas que, inclusive, remetem a uma caricatura quase infantil do que nos é imposto como poder, ou seja, essa força coercitiva oriunda de um outro que nos é estranho.


O avesso, o infamiliar. Essa representação do desconhecido ainda atravessa os caminhos da inocente Betty a partir de Rita, uma mulher que sofre de amnésia após um suspeito acidente de carro.


E este emaranhado de estórias ganha força a partir da imagem; o bom cineasta entende que de nada basta o texto enquanto este não existir como propulsor da forma em que cada elemento é filmado e decupado. A chegada de Betty a Los Angeles é fenomenal justamente por seu inchaço de inocência e idealização  —  a dublagem que contrasta com as performances, a luz que vaza por brechas, o mundo encantado que parece se curvar ao que nos é exposto.


E o desencanto que rasteja pelos cantos dessa cidade tão valorosa aos sonhadores parece estar ali, latente, desde o início. O surrealismo de Lynch constrói um reino do ilógico, do ambíguo e do ambivalente  —  assim como o inconsciente de Freud.


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Não é a história de Betty a história de todos nós, sujeitos da civilização? Se Godard anunciou os perigos da predação da arte pela cultura, é porque esta última já mostrava suas facetas de destruição, suas pulsões de morte direcionadas à humanidade. Ora, mas nós somos a cultura: isso só pode vir de nós mesmos, portanto. Freud apontou, no seu clássico O Mal-estar na Cultura, como os conflitos pulsionais geram um pujante descontentamento entre os participantes da sociedade civilizada.


Mesmo numa análise direcionada ao Ocidente, as descobertas do autor alemão podem ser ampliadas para todas as formas de civilização registradas na história da humanidade  —  procuro, ainda, alguma forma de organização social que não tenha estabelecido tabus e mecanismos de repressão do desejo em alguma medida. Do Império Romano aos astecas, todos parecem lutar contra essas restrições do que transborda no inconsciente.


A genialidade de Lynch está justamente em transpor esse macrocosmo em um microcosmo cautelosamente construído; e que, ainda sendo um microcosmo, não deixa de gritar ao mundo externo as suas verdades tão ambíguas. Falamos de uma história terrivelmente íntima que, na sua pessoalidade radical, ainda trata de toda uma condição humana.


E isso não poderia ser feito apenas por via de uma “estória” de cinema, um “roteiro” genial  —  a cinefilia séria já está cansada de defender que nos filmes, não há um conteúdo distinto de uma forma: há sempre um conteúdo-forma ou uma forma-conteúdo. Isso se explicita já nos primeiros segundos de Cidade dos Sonhos, lá no concurso de dança jitterbug  —  mas também em outra cena igualmente icônica, a espetacular sequência de Betty e Rita no Club Silencio.


As cortinas se abrem, revela-se uma performance de metalinguagem. Nós, espectadores numa sala de cinema, assistimos a esta explicação meticulosa do que é a própria arte a qual estamos sendo expostos. Ainda não sabemos, mas o misterioso showman que mistura espanhol, inglês e francês fala diretamente conosco: “It’s no longer your film”, disse um executivo ao pobre Adam Kesher em algum momento do início do longa; mas também este já não é o filme de Betty.


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O filme é e sempre foi pertencente a Diane, esta que esperávamos já estar morta  —  e o que se segue a partir das revelações desta figura intrigante é o que Lynch oferece de melhor: um mergulho no inquietante, no esquisito, no bizarro, no infamiliar. E, quando o filme termina, percebemos que a máxima que expropria a criação artística de Kesher vale, também, para Diane, Lynch e quaisquer que sejam os envolvidos no projeto. Cidade dos Sonhos pertence somente à humanidade, este é o seu maior feito: ser a maior investida de um cineasta contra o mal-estar da cultura, um presente divino que inaugura o século XXI e utiliza do milenar conflito pulsional que tanto nos aflige.


O melhor de tudo é que, muito provavelmente, nada disso tenha sido pensado por David Lynch na produção de Cidade dos Sonhos. O diretor passou boa parte da sua vida negando qualquer tentativa de racionalização da sua obra; aprendemos, com Freud, que a pulsão de morte se dá num esmigalhar, numa fragmentação em unidades menores que repousa num retorno ao inorgânico.


Nada mais fatal, para a arte, que esse desmiuçar  —  o que escrevo aqui é apenas uma articulação do conflito pulsional e do infamiliar no penúltimo filme lançado nos cinemas pelo eterno diretor. Hoje, descansa a mente genial por trás de Cidade dos Sonhos  —  e tudo que se pode escrever sobre o longa-metragem de 2001 parece ridiculamente desprezível, tamanha é a sua grandiosidade.


1 comentário


iasdornelas
há 6 dias

O desejo de retorno ao inorgânico reside no mais profundo do ser, porém, paradoxalmente, sua análise mostra um apreço pelo orgânico: a vida e obra-viva da arte. Embora Lynch não tenha pensado nisso, você percebe o simbolismo intrínseco no inconsciente da obra. A arte, filha do carbono e do amoníaco, foi autônoma, expandindo a faceta desenhada pelo cineasta, mas condensada ao seu olhar. Sempre lindo.

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