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O Palhaço (2011) é sobre se reconectar


O Palhaço

“Você devia ter um ventilador”. A frase que abre o filme inicialmente parece não ter mais importância do que uma simples reclamação corriqueira sobre o calor. No entanto, a sentença revela todas as camadas sobre a trama de reconexão vista em O Palhaço (2011).


Na trama, Benjamim (Selton Mello) trabalha no Circo Esperança junto com seu pai Valdemar (Paulo José). Juntos, eles formam a dupla de palhaços Pangaré & Puro Sangue e fazem a alegria da plateia. Mas a vida anda sem graça para Benjamin, que passa por uma crise existencial e, assim, volta e meia, pensa em abandonar Lola (Giselle Mota), a mulher que cospe fogo, os irmãos Lorotta (Álamo Facó e Hossen Minussi), Dona Zaira (Teuda Bara) e o resto dos amigos da trupe.



Logo no início, o longa apresenta toda a dinâmica vivida pelos integrantes do circo. Cada personagem é apresentado de forma contrastante às suas personas no palco. Afinal, faz parte do show interpretar personagens para o entretenimento do público. Porém, é em meio a esse contexto que o estado mental de Benjamim é apresentado: há uma clara cisão entre as duas faces do rapaz. Em frente ao público, o palhaço Pangaré diverte até os mais comedidos, transmitindo uma inocência clássica das figuras de nariz vermelho e calçados tamanho 48.


A leveza dentro da tenda, no entanto, se dissipa no exato momento do fim do show. Em Benjamim, há uma confusão de sentimentos que não são facilmente digeridos pelo rapaz. Há problemas com a própria documentação, com o alvará do circo, com as demandas dos colegas e há um distanciamento na relação com o próprio pai. 


“Tô só esperando as coisas se acalmarem e aí eu resolvo isso tudo"

A partir disso, ele não tem tempo para entender o motivo da melancolia dentro de si. Benjamim, em alguns momentos, até tenta, mas é rapidamente levado a deixar de lado a si mesmo. Por isso, quando Lola sussurra no ouvido dele que deveriam ter um ventilador, um ponto de interrogação surge na cabeça de Benjamim e o objeto ventilador se transforma em um signo para o dilema no personagem. 


O Palhaço
Reprodução/O Palhaço

O ventilador como desejo


Em Dicionário de Semiótica (2008), Greimas e Courtés concluem que o signo tem por função estar no lugar de outra coisa, representando uma “realidade”. Seguindo essa lógica, o ventilador adquire uma função narrativa na trama de relembrar o protagonista dessa dúvida que paira em sua cabeça, obrigando Benjamim a refletir sobre seu propósito. Ele enxerga o ventilador como uma projeção de conhecer uma nova vida. Afinal, tudo o que Benjamim conhece tem relação com o circo.


Quando abordado por um agente, após uma apresentação, é revelado que o protagonista tem apenas a certidão de nascimento, enquanto outros documentos como a própria carteira de identidade, foram deixados no status de “vou fazer”. Assim, a busca pela própria identidade, tanto figurativamente quanto simbolicamente, acabam escalando de acordo com as aparições “fantasmagóricas” de ventiladores, que cumprem a função de relembrar o estado mental frágil de Benja, mesmo que o palhaço relute em explorar seus sentimentos.


O Palhaço
Reprodução/O Palhaço

Mesmo nos momentos de descontração, Benjamim sempre está afastado dos outros membros do circo, fisicamente e subjetivamente. O estado mental do rapaz é comentado por cima pelos outros personagens, mas nunca aprofundado. Afinal, o consenso era de que era preciso "deixar ele". 


O primeiro momento onde Benjamim sorri é quando está observando a pequena Guilhermina (Larissa Manoela) se divertindo com os pais em uma interação casual de família. Antes, o personagem havia sido abordado por uma mulher que havia se encantado com a apresentação. Essas duas situações acabam somando no significado do desejo de Benja em ter algo que não possui, que lhe falta. Como sua rotina não lhe satisfaz mais, a vontade pelo diferente o cerca e o empurra para uma nova vida, tal qual um ventilador afasta o vento, Benja se afasta do circo.


“O gato bebe leite, o rato come queijo"

 

Toda a narrativa em volta da desconexão de Benjamim em relação ao circo passa pela figura de seu pai, Valdemar. Em cena, a química dos dois é digna dos adjetivos mais formidáveis, mas o relacionamento entre ambos não consegue se sustentar fora do espetáculo. A culpa disso parte das atitudes do velho palhaço, que parece ter medo de se envolver na jornada pessoal de Benjamim. 


Pouco é dito por Valdemar. São raros os momentos onde há uma conversa entre pai e filho. Quando acontece, está relacionado diretamente a questões “a resolver” do circo. Os dois também nunca mantêm contato visual prolongado e, quando estão dispostos a dar atenção para essa relação, a direção de Selton Mello os coloca em posições opostas, de costas um para o outro. Por conta disso, o palco se torna uma representação na relação entre essas duas pessoas. Uma realidade própria daquele ambiente, que não representa nada além de um espetáculo.


"Tô cansado. De tudo. Cansado de fazer o que eu faço. Palhaço. Eu faço o povo rir, mas quem é que vai me fazer rir? Tô precisando dormir, tô precisando resolver os problemas."


A exaustão chega quando Benja não consegue mais separar as realidades. A apresentação então se torna tão sem graça quanto o estado mental do palhaço. Ao invés de risos, o que se vê no público são olhares de espanto diante de um espetáculo de melancolia. Somente depois da quebra do filho em frente ao público que o pai toma a iniciativa de conversar com ele, questionando sobre quem Benjamim é.


O Palhaço
Reprodução/O Palhaço

É após essa conversa que o protagonista decide deixar o circo e ir buscar a resposta para a pergunta. Quem eu sou? Benjamim ou Pangaré? O problema está no fato do personagem nem saber quem é Benjamim. Sua despedida, sem algum contato visual ou diálogo com o pai, acontece acompanhada somente da trilha sonora e do ronco dos motores dos carros partindo, deixando-o sozinho na busca pela sua própria identidade.


Na cidade, Benjamim procura, primeiramente, por um lugar para ficar. Depois, resolver a situação de seus documentos. Por fim, um emprego. No entanto, a melancolia no olhar do personagem não finda após as conquistas. Ele trabalha em uma loja de eletrodomésticos, rodeado de ventiladores. Porém, o tédio da nova vida o leva a se questionar novamente sobre sua identidade. O ventilador, agora parado, não parece mais tão deslumbrante quanto antes. Em outros tempos, o objeto que aparecia como fonte de suas projeções, agora perde o brilho, tornando-se apenas um objeto. 


Em um momento de descontração com colegas de trabalho, Benjamim sorri enquanto um de seus colegas está contando uma piada. Não por achar aquela narrativa engraçada, mas por remeter diretamente à sua vida no circo, deixada para trás. É nesse momento, em meio às risadas, que Benjamim consegue enfim ter a resposta para a pergunta de seu pai. Com um ventilador em mãos e, assim como o rato come queijo, ele percebe que Benjamim e Pangaré não são diferentes. E quem é Benjamim? O Palhaço.


O Palhaço
Reprodução/O Palhaço

Invadindo uma apresentação do Circo Esperança, Pangaré aparece repentinamente e inicia-se um diálogo com Puro Sangue, onde toda a palhaçada rotineira adquire uma profundidade ímpar, já que, por meio da arte, os dois finalmente expõem seus sentimentos, o que é selado por um beijo de esquimó entre os narizes dos palhaços.


Depois de satisfazer os desejos, representados pela figura do ventilador, Benjamim conheceu uma nova realidade e percebeu, através do tédio do cotidiano, que a única coisa que estava lhe faltando era conhecer quem realmente era. Assim, se reconectando consigo, com o seu pai e com o próprio circo.


“O gato bebe leite, o rato come queijo e eu sou palhaço"

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