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O Homem de Lata: dor também é amor

Atualizado: há 5 dias

“Um coração não é julgado pelo quanto você ama, mas pelo quanto é amado pelos outros”.

A frase que deveria consolar o Homem de Lata no sonhado encontro com o Mágico de Oz é, acima de qualquer coisa, uma mentira. Não que o amor recebido não seja válido para medir o quanto se sente - no caso dele, é que a teoria não se aplica.


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O Homem de Lata - Wicked: For Good


A história do Homem de Lata surgiu originalmente com Nick Chopper, um personagem amaldiçoado pela Bruxa Má do Leste, Nessarose. Um homem normal da terra dos Munchkins, Nick se apaixonou, e decidiu se casar com uma mulher de seu povo. Foi então que a maldição recaiu sobre ele, fazendo com que o machado que pertencia a ele cortasse seus membros, um por um, até que o casamento fosse impossibilitado. 


À medida em que perdia partes do seu corpo, Chopper as substituía por membros de lata. Braços, pernas e, aos poucos, os centros da existência. Primeiro, o cérebro, cortado e consertado em um só momento. “A Bruxa Má então fez o machado escorregar e cortar minha cabeça, e no começo eu pensei que era o fim para mim. Mas o armeiro aconteceu de passar por ali, e ele me fez uma nova cabeça de lata”.


Depois veio, então, o coração. Esse não pôde ser reposto, deixando um homem vivo, pensante e de lata - não mais apaixonado ou mesmo Nick. Enlatado, ele se afastou de tudo e todos que conhecia. Aos poucos, os membros cortados por ele foram unidos em um novo ser, que acabou se casando com a noiva do antigo Chopper. Ele, seguiu sozinho. 


No Mágico de Oz, dizem que ficou enferrujando nas matas por um ano até encontrar Dorothy e ir ao Mágico pedir por um coração. Chegando lá, ouviu a frase que o diz que o coração não dizia respeito ao que ele sente, mas sim ao que sentem por ele. Para o Mágico, amor. Na realidade, medo e ódio. 


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O Homem de Lata - O Mágico de Oz


O Homem de Lata de Wicked é uma personificação perfeita do que o personagem que sempre insistiu em representar a busca por amor de fato representa. Logo que surge no filme, ainda no início, Boq Woodsman se apaixona por Glinda, a Bruxa Boa e aluna mais amada de toda a escola. Eis então a primeira de suas muitas buscas por amor - não necessariamente dela, mas todo o que pudesse ter. 


Amar e namorar Glinda ia muito além de conseguir o amor dela para si. Boq sabia que, amando Glinda, seria amado também por todos aqueles que amavam ela. Estava ali seu coração - no amor dos outros. 


Glinda, então, diz a ele para amar Nessarose, que não era amada por ninguém. Contradição íntima de todas as vontades de Boq. Na busca por aprovação e amor que sempre o guiou, a chama para dançar. Na pista, vê Glinda e Fiyero se beijando. Mais uma vez, alguém não o amando. E escolhe mentir para Nessa dizendo a amar. 


A mentira contada para Nessa segue a mesma ideia que rege toda e qualquer ação de Boq. Não se trata do amor que ele sinta ou não por ela, mas sim de ser amado por alguém. Na falta daquela que é amada por todos, que seja então a amada por poucos - tudo é melhor do que o amor de ninguém. 


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O Homem de Lata - Wicked: For Good


Essa lógica prende Boq a Nessa por anos. Ela se torna governadora, “popular”, e recebe outros tipos de amor. Glinda, por sua vez, segue sua vida, até que aparece nos jornais noiva. Como ele, originalmente, foi. Prestes a se casar, como na história original ele iria. Fadada a não conseguir, como ele também não conseguiu. 


A dor de Boq não é por perder Glinda que, diga-se de passagem, ele mal conhecia. Mais ainda, que nunca amou, porque nunca sequer trocou palavra com ela. Amando a famosa popularidade, ele assistia a outro homem, tão popular e amado quanto ela, agregar ainda mais amor a sua vida. No lugar dele. Ou pelo menos o que, para ele, deveria ser. 


É então que Boq troca o pouco de Nessa pela possibilidade do muito de Glinda, e a pede para ir embora, ao passo que ela bloqueia as viagens dos Munchkins. Boq, então, volta, sendo um mártir escondido de seu povo ao se tornar escravo de Nessa. Sem amar, ele agora não recebia mais amor, totalmente perdido em seu propósito ao lado dela. 


Nessa sente isso - e toma a grande decisão. Ele, que dizia que Glinda havia levado seu coração, não merecia ter um, e ela poderia tirá-lo dele. Nessa fez seu feitiço, Boq perdeu seu coração. Elphaba, então, fez o dela, para salvar a vida dele - o Homem de Lata, mais uma vez, nasceu. 


Boq viu Nessa fazer o feitiço. Boq sabia que ia morrer. Boq assistiu enquanto Elphaba tentava impedi-la, e Boq percebeu que Elphaba salvou sua vida. Mas, ao transformá-lo no Homem de Lata, ela tirava dele ainda mais amor, o transformando em uma criatura estranha passível de amor de ninguém. 


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O Homem de Lata - Wicked: For Good


O Homem de Lata troca o amor que nunca foi dele pelo ódio que sempre teve. Encontra nos outros a forte emoção que sempre quis que sentissem por ele - agora medo, não amor. Quebra a porta, explode, enlouquece, tenta matar Nessarose. Puro ódio. Puro medo. Sentimento. Sem amor.


Nessa diz a ele que quem o transformou no Homem de Lata foi Elphaba. Ele sabe que é verdade, mesmo sabendo que isso foi feito para que ele não morresse sem coração. O ponto é que, para ele, talvez fosse mesmo melhor morrer sem sentir a falta do sentimento que não recebeu dos outros do que se tornar ainda menos amado. E ele se tornou. 


Foi então que, como Homem de Lata, ele encontrou tudo aquilo que procurava, em uma roupagem diferente. Reunindo o povo de Oz sob sua voz para odiar Elphaba, ele recebia uma espécie de amor e apoio, sendo pela primeira vez o centro que, desde que encontrou Glinda, sempre o deslumbrou. 


Ele era o foco. Tinha amigos, ou aliados, pelo menos. Tinha seguidores. Um Leão que o apoiava mais que tudo porque era guiado pelo que ele sabia despertar de mais intenso em todos - o medo. 


Não é por acaso que seja justamente o Leão Covarde o grande protegido do Homem de Lata. Não é por acaso que as cenas dele o colocam sempre no centro, em cima, destaque. Não é infundado o olhar de ódio que ele lança para Glinda em seu principal discurso. 


O Homem de Lata - Wicked: For Good
O Homem de Lata - Wicked: For Good

Para quem não consegue amar ou ser amado, resta o sentimento que mais faz o coração bater forte. A sensação de ouvir as batidas do próprio coração, que aparece muito mais pelo medo do que pela paixão. Não chegou a ele o desejado amor, então ele encontrou seu próprio jeito de amar. Instigar ódio. Dar medo. Fazer sentir. 


A atuação assustadora de Ethan Slater em Wicked: For Good é perfeita para o Homem de Lata porque dá ao personagem tudo que, entre mentiras de amor, ele sempre foi - ódio, medo e sentimento. Mostra ao público um Homem de Lata que se torna assassino, prioriza sentir ódio acima do que é justo, e prefere atacar Elphaba do que refletir sobre quem realmente o machucou. Afinal, qual a graça em sentir ódio de alguém que já morreu e não pode sentir medo?


O Homem de Lata que se alimenta de medo tem muito coração. Como diz o próprio, “fico com o coração, porque cérebro não faz ninguém feliz, e felicidade é a melhor coisa do mundo”. Antes não ter cérebro ou julgamento do que é certo ou errado, merecido ou injusto, mas priorizar o sentir. A satisfação. A felicidade de quem conseguiu algum sentimento, seja ele qual for. 


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O Homem de Lata - Wicked: For Good


Melhor sentir o que for, do que não sentir nada a vida inteira. “Agora eu sei que tenho um coração, porque ele está doendo”. E, para ele, a dor consegue substituir o amor. 


*Este é um ensaio feito com carinho sobre o personagem que mais me deu medo quando era criança, e ficou congelado na minha mente na imagem dos pesadelos onde ele aparecia ao lado da minha cama, deitado no chão, rangendo e preso em si mesmo. Se as memórias que tenho dele até adulta puderem me ensinar alguma coisa, espero que seja que é melhor não ter nenhum amor, do que causar alguma dor.

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