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La Haine a Arte da ViolĂȘncia

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Respirei fundo. Engoli em seco uma saliva que jĂĄ nĂŁo me pertencia e, boquiaberto, permaneci atĂ© o Ășltimo segundo. Reação insĂłlita no meu caso. Mas ali, diante de mim, estava uma obra que eu ainda nĂŁo tinha visto e que, de forma inegĂĄvel, revolucionou tudo. O desfecho foi como uma bala: certeira, gĂ©lida, atravessando minha cabeça ansiosa. Aquela bala esteve presa durante todo o filme, aguardando apenas o gatilho. Vi-me, entĂŁo, escutando o veredicto coletivo cĂ­nico, cruel, saindo da boca do prĂłprio rĂ©u. E aquele rĂ©u era o motor do balanço entre os personagens, o pivĂŽ invisĂ­vel que agitava cada gesto ao longo da narrativa.


E como um disparo, ele foi eficaz, nĂŁo para o lado que desejarĂ­amos. Mas quem Ă© o rĂ©u dessa histĂłria? Do que estou falando, afinal? Quem Ă© o culpado? Essas perguntas sĂŁo inevitĂĄveis apĂłs assistir a um filme tĂŁo tenso, tĂŁo cheio de camadas, e que em nada se deixa reduzir Ă  simplicidade. La Haine (O Ódio), de Mathieu Kassovitz, Ă© esse filme, e talvez o mais impactante, do ponto de vista social, que jĂĄ vi nos Ășltimos anos. Desde os primeiros segundos, o tom Ă© dado: "They were all dressed in uniforms of brutality". A canção Burnin’ and Lootin’, de Bob Marley, embala a sequĂȘncia inicial. NĂŁo Ă© apenas trilha sonora, Ă© um aviso, um lamento, um chamado.


La Haine nĂŁo Ă© um filme apenas sobre trĂȘs jovens nas margens da sociedade francesa. É, sobretudo, uma captura fotogrĂĄfica — no mais literal e profundo sentido do termo — da tensĂŁo que sempre foi, e continua sendo, a França. Um pequeno paĂ­s no coração da Europa, mas com um legado imenso de sangue, conflitos e contradiçÔes desde seu hino atĂ© os seus subĂșrbios. Primeiro como reinado, depois como impĂ©rio, e hoje como repĂșblica, a França Ă© berço de revoluçÔes, sim, mas tambĂ©m de cicatrizes histĂłricas que jamais fecharam.


Antes de apresentar a trama, Ă© essencial compreender o contexto que a cerca. Porque o Ăłdio, nesse filme, Ă© atmosfera. Ele nĂŁo Ă© apenas um sentimento, Ă© estrutura. É preciso saber: quem odeia? Quem Ă© odiado? Quem incita, quem se defende, e serĂĄ que Ă© possĂ­vel se defender dele?

Divulgação/MKL Distribution
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Diferente do Brasil, que conquistou sua independĂȘncia formal ainda no sĂ©culo XIX, muitas ex-colĂŽnias francesas sĂł romperam formalmente com a metrĂłpole ao longo do sĂ©culo XX. É o caso da ArgĂ©lia, que sĂł alcançou sua independĂȘncia em 1962, apĂłs uma guerra sangrenta. O rastro dessa colonização se faz presente atĂ© hoje. O resultado? Um fluxo migratĂłrio ĂĄrabe-africano intenso e contĂ­nuo para a França, reflexo nĂŁo apenas da histĂłria imperial, mas da desigualdade geopolĂ­tica entre metrĂłpole e ex-colĂŽnia.


Após a Segunda Guerra Mundial, com o país devastado e suas estruturas cívicas em ruínas, a França precisava se reerguer. Para isso, voltou-se justamente para essas populaçÔes coloniais, atraindo mão de obra barata com promessas de dignidade, liberdade e oportunidades. Promessas que nunca se cumpriram por completo.


O filme foi concebido e lançado especialmente em uma das explosĂ”es desse caos acumulado, em um momento de fortes tensĂ”es sociais na França dos anos 1990. O diretor Mathieu Kassovitz escreveu o roteiro motivado por um evento real chocante: a morte de MakomĂ© M’BowolĂ©, jovem imigrante negro do Zaire, baleado enquanto estava algemado sob custĂłdia policial em Paris, em abril de 1993. Esse caso, oficialmente tratado como um “acidente”, nĂŁo foi isolado; havia um histĂłrico de violĂȘncia policial nas periferias francesas, com centenas de incidentes fatais registrados desde os anos 1980.


Outro episĂłdio marcante ocorreu em 1986, quando Malik Oussekine, um estudante de origem argelina, foi espancado atĂ© a morte por policiais apĂłs um protesto pacĂ­fico, evento que Kassovitz faz referĂȘncia na montagem de abertura do filme. Esses incidentes expĂ”em o clima de desconfiança mĂștua e revolta latente nas banlieues (subĂșrbios) francesas, onde frequentemente habitam comunidades de imigrantes e descendentes em condiçÔes socioeconĂŽmicas precĂĄrias. As banlieues sempre foram marcadas por desemprego, infraestrutura precĂĄria e isolamento geogrĂĄfico em relação ao centro das cidades. Muitos jovens dessas ĂĄreas, geralmente filhos de imigrantes africanos, ĂĄrabes e de outras minorias, sentiam-se excluĂ­dos da prosperidade francesa e vĂ­timas de racismo estrutural. Estes polĂȘmicos conjuntos habitacionais perifĂ©ricos, distantes do centro urbano, isolados, quase desertos.

Divulgação/MKL Distribution
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No filme, sĂŁo filmados de maneira que se percebe, imediatamente, a ausĂȘncia de saĂ­da. A cĂąmera nos prende dentro dos prĂ©dios, dos muros, das vielas, hĂĄ um sentimento de estagnação. Tudo Ă© estĂ©ril, concreto, cinza. NĂŁo hĂĄ verde, nĂŁo hĂĄ horizonte. Apenas o abandono. Kassovitz enquadra esses espaços como territĂłrios de confinamento. NĂŁo sĂŁo lares, sĂŁo zonas de exclusĂŁo, criadas sob a lĂłgica de um urbanismo segregador. E Ă© nesse ambiente que o Ăłdio nasce, se instala e se reproduz. Um Ăłdio que nĂŁo vem do nada, mas de uma histĂłria longa de negligĂȘncia, racismo, marginalização e violĂȘncia institucionalizada.


NĂŁo Ă  toa, tumultos e confrontos com a polĂ­cia jĂĄ vinham ocorrendo esporadicamente antes do filme. Esse contexto explosivo Ă© capturado por Kassovitz em La Haine, que retrata 24 horas na vida de trĂȘs jovens de um subĂșrbio parisiense no dia seguinte a uma violenta rebeliĂŁo contra a brutalidade policial. O cenĂĄrio do filme, o conjunto habitacional degradado apĂłs um motim desencadeado pelo espancamento de um rapaz pela polĂ­cia  reflete fielmente aquela realidade tensa e incendiĂĄria quase que pĂłs-apocalĂ­ptica, sobretudo no mundo real, visceral.


A verossimilhança histĂłrica de La Haine ficou evidente quando, poucos dias apĂłs sua estreia em 1995, um subĂșrbio real de Paris (Noisy-le-Grand) irrompeu em distĂșrbios apĂłs a morte de um jovem perseguido pela polĂ­cia. MĂ­dia e polĂ­ticos chegaram a questionar se o filme teria instigado essa violĂȘncia, apelidando o incidente de “Noisy-la-Haine” em referĂȘncia direta Ă  obra​. Na prĂĄtica, contudo, Kassovitz apenas expĂŽs na tela uma situação que jĂĄ fervilhava hĂĄ anos. Como ponderou um sociĂłlogo na Ă©poca, “os garotos da periferia nĂŁo esperaram La Haine para expressar sua revolta”​. Assim, o filme emerge de um caldo sĂłcio polĂ­tico real, ecoando o grito de uma juventude marginalizada e enfatizando que a violĂȘncia urbana e o conflito racial eram problemas urgentes da França dos anos 90.


LA DIREÇÃO MATHIEU KASSOVITZ

Mathieu Kassovitz, entĂŁo com 27 anos, imprimiu em La Haine uma direção enĂ©rgica e estilisticamente audaciosa, mesclando influĂȘncias do cinema americano e europeu para criar um filme visualmente marcante e tematicamente contundente. Uma das decisĂ”es estĂ©ticas mais notĂĄveis foi a opção pela fotografia em preto e branco. Originalmente filmada em cores, a obra foi convertida para preto e branco na pĂłs-produção. Essa paleta monocromĂĄtica amplifica o contraste entre luz e sombra, ressaltando o clima de tensĂŁo e o carĂĄter atemporal do conflito retratado.

Divulgação/MKL Distribution
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É um grito. Uma amputação das cores para expor o osso. Mais que isso: o preto e branco nivelou tudo. Retirou qualquer distração visual que pudesse separar Paris da periferia — tudo Ă© um mesmo limbo. NĂŁo tem glamour, nĂŁo tem cartĂŁo-postal, tem concreto e sangue, e tem algo ainda mais perverso (no bom sentido) nessa escolha estĂ©tica: o preto e branco transforma a cidade num espaço sem tempo definido. VocĂȘ nĂŁo sabe se aquilo Ă© 1995, 2005 ou amanhĂŁ.


O presente vira um tempo morto; os prĂ©dios parecem ruĂ­nas de uma guerra que ninguĂ©m lembra ter começado. A ausĂȘncia de cor nĂŁo Ă© sĂł uma decisĂŁo estĂ©tica — Ă© uma afirmação brutal de que nĂŁo hĂĄ futuro. O presente Ă© um eterno preto e branco, sem horizonte, sem mutação. Sobretudo, remete ao documental e ao neorrealismo, ancorando a narrativa em um realismo cru. Ao mesmo tempo, torna a fotografia simbĂłlica. Ao eliminar a cor, Kassovitz eleva as texturas e os volumes dos cenĂĄrios: o concreto domina, a sujeira aparece, as sombras pensam, as figuras humanas, muitas vezes, se fundem ao cenĂĄrio — nĂŁo por delicadeza, mas por aniquilação subjetiva.


Os corpos viram parte do mobiliĂĄrio urbano da exclusĂŁo. NĂŁo hĂĄ distinção entre sujeito e ambiente porque o ambiente devora os sujeitos. Essa estĂ©tica tambĂ©m potencializa o jogo polĂ­tico do filme. La Haine é um filme de confronto, e nĂŁo hĂĄ nada mais confrontativo do que a alta definição da dor em preto e branco. Os traços dos personagens saltam, expressĂ”es ampliadas — e o que vemos? ExaustĂŁo, raiva, desalento. O olhar de Vinz no espelho, imitando Travis Bickle, Ă© ainda mais patĂ©tico e trĂĄgico em preto e branco. Ele nĂŁo Ă© um anti-herĂłi. Ele Ă© um garoto tentando sobreviver ao prĂłprio vazio. E o preto e branco nĂŁo o eleva Ă  estĂ©tica do cool, pelo contrĂĄrio, o desmonta.

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Kassovitz demonstra um domĂ­nio notĂĄvel da linguagem cinematogrĂĄfica ao longo do filme. O ritmo narrativo Ă© cuidadosamente construĂ­do: a trama acompanha um Ășnico dia, praticamente em tempo real, com a passagem das horas marcada por um relĂłgio em tela e pelo conto repetido por Hubert sobre um homem em queda livre que se auto tranquiliza dizendo “atĂ© aqui, tudo bem
” Essa metĂĄfora — “o importante nĂŁo Ă© a queda, Ă© a aterrissagem” — paira sobre toda a narrativa, criando uma crescente sensação de urgĂȘncia e pressĂĄgio de desastre, como se a sociedade fosse uma bomba-relĂłgio prestes a explodir.


Sem dĂșvidas ele, equilibra momentos de calmaria e humor com uma escalada gradual da tensĂŁo, refletindo o ciclo volĂĄtil do dia a dia na periferia — horas de Ăłcio e brincadeiras podem, num instante, dar lugar a explosĂ”es de violĂȘncia. Essa alternĂąncia imprime Ă  obra um ritmo orgĂąnico, evitando tanto o sensacionalismo fĂĄcil quanto o didatismo; o diretor prefere uma abordagem imersiva, quase em estilo cinĂ©ma vĂ©ritĂ©, para que o espectador vivencie aquela rotina ao lado dos personagens.


O estilo visual Ă© inventivo e cheio de referĂȘncias cinematogrĂĄficas. Kassovitz, que cresceu admirando filmes hollywoodianos e a cultura hip-hop, incorpora em La Haine elementos desses universos. HĂĄ um famoso tributo a Martin Scorsese: em uma cena antolĂłgica, Vinz (Vincent Cassel) olha-se no espelho e reproduz os trejeitos e a fala “You talkin’ to me?” de Travis Bickle, protagonista de Taxi Driver. Essa citação explĂ­cita nĂŁo Ă© gratuita — assim como o personagem de De Niro, Vinz flerta com a ideia de reagir violentamente Ă  sociedade que o rejeita.


Outras influĂȘncias do cinema americano dos anos 70-80 aparecem no tom de gangster movie e nos momentos de tensĂŁo urbana que remetem a obras como Scarface e aos filmes de Spike Lee. AliĂĄs, Kassovitz admitiu que a apresentação dos trĂȘs protagonistas de La Haine foi inspirada na forma como Scorsese introduz os personagens em Mean Streets (1973), usando montagem ĂĄgil e mĂșsica para dar identidade instantĂąnea a cada um.

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A mĂșsica e a cultura hip-hop, aliĂĄs, tĂȘm papel de destaque na direção. Em uma sequĂȘncia tecnicamente deslumbrante, a cĂąmera parte do quarto de um DJ no alto do prĂ©dio e sobrevoa o pĂĄtio do conjunto habitacional ao som de um mix improvisado que funde o rap franco-magrebino “Nique la Police” (do grupo SuprĂȘme NTM) com “Sound of da Police”, de KRS-One, e trechos de Edith Piaf. Essa cena ilustra a filosofia de edutainment que Kassovitz valorizava: unir consciĂȘncia social e estilo em doses iguais. Com movimentos fluidos de cĂąmera e uso criativo da trilha sonora, o diretor consegue situar o espectador no ambiente vibrante da periferia (repleto de grafites, rap e breakdance), ao mesmo tempo em que enfatiza a mensagem polĂ­tica (a letra rebelde do rap contrastando com a melodia nostĂĄlgica de Piaf). La Haine foi pioneiro ao trazer o hip-hop francĂȘs para o centro da narrativa cinematogrĂĄfica, ajudando inclusive a catapultar esse gĂȘnero musical ao mainstream na França.


Outra escolha de direção digna de nota é o uso de lentes e enquadramentos para refletir a situação dos personagens. Na primeira metade, passada na cité periférica, predominam planos abertos com lente grande-angular, integrando os personagens ao espaço físico do bairro; jå na segunda parte, quando o trio vai ao centro de Paris, Kassovitz utiliza teleobjetivas e planos fechados.


O efeito visual Ă© sutil, mas poderoso: no subĂșrbio, vemos Vinz, Hubert e SaĂŻd em relação ao cenĂĄrio opressivo dos prĂ©dios e ruas vazias (realçando como estĂŁo imersos naquele ambiente); no centro urbano, ao contrĂĄrio, eles aparecem isolados do entorno, com o fundo fora de foco, transmitindo a sensação de deslocamento e claustrofobia que sentem em meio Ă  cidade “branca” que os rejeita. Curiosamente, essa decisĂŁo estĂ©tica tambĂ©m teve um motivo prĂĄtico — a equipe nĂŁo obteve autorização para filmar em certas ruas de Paris e recorreu a filmagens de guerrilha, com cĂąmera escondida e quadro fechado nos atores. Seja por necessidade ou virtude, Kassovitz transformou essa limitação em linguagem, ecoando a urgĂȘncia do cinema de rua da Nouvelle Vague (hĂĄ quem veja ecos de Godard e do espĂ­rito rebelde de Acossado nessas escolhas tĂ©cnicas).


Desde sua estreia, La Haine tornou-se não apenas um fenÎmeno cinematogråfico, mas um referencial cultural e político na França e no mundo.

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O filme causou forte impacto jĂĄ em 1995: apĂłs sua projeção no Festival de Cannes, foi ovacionado de pĂ© e rendeu a Mathieu Kassovitz o prĂȘmio de Melhor Diretor no festival. No circuito comercial francĂȘs, surpreendeu ao alcançar mais de 2 milhĂ”es de ingressos vendidos — algo notĂĄvel para um drama social em preto e branco —, evidenciando que a obra ressoou amplamente com o pĂșblico.


A crĂ­tica especializada exaltou La Haine quase de forma unĂąnime — atĂ© hoje o filme detĂ©m 96% de aprovação no Rotten Tomatoes, com consenso de que Ă© “contundente e de eficĂĄcia impressionante ao dissecar divisĂ”es sociais e econĂŽmicas na Paris dos anos 90”. Em publicaçÔes francesas e internacionais, elogios destacaram a urgĂȘncia do tema, a direção estilosa e a sinceridade das atuaçÔes; por exemplo, o Los Angeles Times o chamou de “cru, vital e cativante” e o The Times (UK) considerou-o “um dos mais contundentes filmes urbanos jĂĄ feitos”. Mais significativo ainda foi o debate que o filme provocou na esfera pĂșblica francesa. La Haine obrigou a mĂ­dia, artistas e polĂ­ticos a confrontarem a realidade dos subĂșrbios marginalizados. O entĂŁo primeiro-ministro Alain JuppĂ© organizou exibiçÔes do filme para membros do governo, reconhecendo o valor sociolĂłgico da obra. O presidente Jacques Chirac chegou a enviar uma carta pessoal a Kassovitz parabenizando-o, num raro gesto de aprovação de um chefe de Estado a um filme crĂ­tico Ă  conduta das autoridades.


Por outro lado, setores mais conservadores reagiram negativamente: a polĂ­cia, sentindo-se atacada, manifestou repĂșdio (como visto em Cannes), e polĂ­ticos da extrema-direita, como Jean-Marie Le Pen, usaram o filme para estigmatizar ainda mais os jovens das banlieues — Le Pen qualificou os manifestantes de Noisy-le-Grand como “canalhas com la haine” que deveriam ser presos. Toda essa controvĂ©rsia apenas confirmou o quĂŁo incisivo e relevante La Haine era: ele atingiu um nervo exposto da sociedade francesa.


No panorama cinematogrĂĄfico, La Haine abriu caminhos e influenciou uma geração de cineastas. Antes dele, poucos filmes franceses haviam focalizado os personagens das periferias com tanta seriedade e empatia. Kassovitz basicamente inaugurou um subgĂȘnero do cinema francĂȘs, o film de banlieue, ampliando a representação da classe trabalhadora imigrante nas telas. Posteriormente, outros filmes seguiram explorando temĂĄticas semelhantes, tanto na França quanto fora: pode-se citar Ma 6-T va crack-er (1997) e Entre os Muros da Escola (2008, de Laurent Cantet) na França, ou ainda produçÔes internacionais como o drama britĂąnico Bullet Boy (2004) e o brasileiro Cidade de Deus, jĂĄ mencionado. Mais recentemente, o elogiado Les MisĂ©rables (2019), dirigido por Ladj Ly — ele prĂłprio criado em banlieue — Ă© frequentemente comparado a La Haine pela atualização que faz do retrato do confronto entre jovens suburbanos e a polĂ­cia, comprovando que o legado de Kassovitz permanece vivo 25 anos depois.

AtĂ© mesmo na cultura pop e no hip-hop, La Haine deixou marcas: trechos do filme e seu tĂ­tulo sĂŁo referenciados em mĂșsicas, e o DJ Cut Killer, que aparece na famosa cena do toca-discos, tornou-se um Ă­cone, assim como as faixas de rap da trilha sonora ganharam notoriedade nacional.


Talvez a maior prova da relevĂąncia contĂ­nua de La Haine seja o fato de que seus temas ainda ecoam na atualidade. Em 2005, uma sĂ©rie de protestos e tumultos varreu as periferias francesas apĂłs dois adolescentes morrerem eletrocutados enquanto fugiam da polĂ­cia — eventos que muitos compararam imediatamente ao filme, dada a similaridade das circunstĂąncias.


O prĂłprio Kassovitz se engajou no debate pĂșblico na Ă©poca, criticando duramente as autoridades (chegou a trocar farpas em um blog com o entĂŁo ministro do Interior, Nicolas Sarkozy). Em 2020, La Haine ganhou uma reexibição especial de 25Âș aniversĂĄrio, motivada pela onda global de conscientização sobre violĂȘncia policial apĂłs o assassinato de George Floyd nos EUA. Na França, casos como o de Adama TraorĂ© (jovem negro morto sob custĂłdia policial em 2016) mostraram tragicamente que a realidade retratada pelo filme persistia. Com efeito, crĂ­ticos notaram que rever La Haine dĂ©cadas depois era quase como assistir a um filme recĂ©m-produzido, dada sua urgĂȘncia e atualidade renovadas frente aos movimentos contemporĂąneos.

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No Ășltimo segundo, o filme finalmente dispara. NĂŁo Ă© um clĂ­max — Ă© a consequĂȘncia. A queda jĂĄ tinha começado antes mesmo da primeira cena. O tiro sĂł revela o que jĂĄ estava em andamento: um sistema falido colapsando em silĂȘncio, na rotina, na omissĂŁo, na arrogĂąncia. O impacto que La Haine escancara nĂŁo Ă© sĂł o da bala que atravessa um corpo, mas o da ideia de RepĂșblica que desaba junto com ele. A sociedade que o filme retrata jĂĄ estĂĄ em ruĂ­nas — nĂŁo falta explosĂŁo, falta reconhecer que a explosĂŁo jĂĄ aconteceu, em cĂąmera lenta, nas escolas sucateadas, nos conjuntos isolados, na patrulha que humilha, no silĂȘncio cĂșmplice da classe mĂ©dia.


O que cai ali nĂŁo Ă© sĂł um garoto — Ă© o mito da igualdade francesa caindo de cara no asfalto. E quando o som do tiro corta o Ășltimo frame, nĂŁo sobra espaço para ambiguidade: a tragĂ©dia foi construĂ­da passo a passo, com a precisĂŁo de quem sabia que, no fim, alguĂ©m apertaria o gatilho. O filme termina como um espelho quebrado. NĂŁo pela violĂȘncia, mas pela clareza com que revela quem puxou o gatilho — e quem fabricou a arma. A cĂłlera acumulada durante todo o filme, todas as falas sobrepostas, empurrĂ”es, agressĂ”es — enfim, o impacto. O ciclo se fecha, e o Ăłdio prevalece.


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