Dark Souls | A “maldição” da existência e o ato de persistir
- Vinícius Nocera
- 22 de abr. de 2024
- 6 min de leitura
Atualizado: 8 de jun. de 2024

“No passado, os jogos eram muito mais difíceis.” Essa frase que praticamente qualquer gamer já escutou de alguém mais velho e chato traz uma questão interessante: Por quê os jogos eram mais difíceis?
Existem várias respostas lógicas para isso: a forma de se fazer jogos evoluiu com o tempo, a limitação dos consoles da época e o preço alto dos cartuchos faziam necessários tornarem os jogos mais desafiadores para assim os gerar uma ilusão de serem grandes. Porém, o que aconteceria se um jogo buscasse a dificuldade dos jogos antigos e aplicasse em um formato interessante e denso para ser explorado?

Tradição, revitalização e inovação
Lançado em 22 de setembro de 2011 pela empresa From Software, Dark Souls foi um divisor de águas para os videogames. Responsável por consolidar todo um novo gênero e filosofia de como se fazer jogos, o Soulsborne, que revitalizou a indústria dos games ao mostrar a dificuldade como uma parte inerente de sua construção de mundo, impactando diretamente na experiência que o jogador teria com o universo inserido.
Diferentemente dos jogos de sua geração, Dark Souls não tinha uma dificuldade no menu para ser escolhida, o jogador teria que enfrentar os desafios propostos a ele de uma forma única, sem poder torná-la artificialmente mais fácil ou difícil. O mundo cruel e punitivo de Dark Souls e a atmosfera vazia contribuem para a formação de uma ideia, essa ideia que é o pilar que sustenta toda a franquia Soulsborne e que é responsável por cativar uma comunidade tão assídua e apaixonada como os fãs de Dark Souls. E essa ideia surgiu graças a um homem.
Hidetaka Miyazaki e a busca por um propósito

É impossível começar a falar dessa ideia proposta sem falar do homem que fez ela ser interessante. Quando criança, Hidetaka Miyazaki se denominava sem talento. Vinha de uma família extremamente pobre da cidade de Shizuoka, cerca de 160 Km de Tokyo, e adorava ler. Por não ter dinheiro para ler mangás, lia livros que eram complexos para sua pouca idade. Em meio ao contexto em que vivia, Miyazaki se descrevia como uma criança sem sonhos. Em uma entrevista para o The Guardian, Miyazaki constatou: “Diferente da maioria das crianças no Japão, eu não tinha um sonho. Eu não era ambicioso.”
Na hora de escolher uma carreira, Miyazaki acabou escolhendo um caminho mais corporativista em uma empresa de tecnologia, mesmo considerando entrar no ramo desenvolvimento de jogos. Com 29 anos, ele escolheu dessa vez entrar de cabeça no ramo de games, saiu do seu antigo trabalho e entrou na From Software. Após trabalhar em uma série de jogos da empresa, Miyazaki ouviu sobre o desenvolvimento de outro jogo em outro setor.
A From Software na época estava realizando a criação de um projeto denominado Demon’s Souls, um RPG de ação e fantasia, porém o desenvolvimento não estava indo muito bem. Foi então que Miyazaki percebeu uma oportunidade: “Se eu de alguma forma conseguisse arranjar uma forma de tomar controle do jogo, eu conseguiria criar qualquer coisa que eu quisesse”. Dito e feito, Miyazaki foi uma das maiores influências para a criação do mundo e atmosfera de Demon’s Souls.
Demon’s Souls foi um sucesso considerável na época, e Miyazaki recebeu controle criativo quase total para a criação de um novo projeto. Mais ambicioso, ousado e único, mas ainda bebendo muito do seu antecessor, surgiu assim Dark Souls.
Um mundo sem esperanças
A história de Dark Souls, mesmo sendo extremamente complexa e única, é contada de uma forma bem secundária, É possível para uma pessoa zerar o jogo e não entender o que está acontecendo. Mas mesmo não compreendendo a trama, é muito difícil o jogador não sentir a atmosfera do mundo.
É um mundo que está morrendo, ou melhor, destinado a morrer. Em Dark Souls, tudo gira em torno de uma chama. A chama mestre é uma espécie de catalisadora de eras. Enquanto ela estiver acesa, a era da chama reinará. Quando ela se apagar, dará lugar a era das trevas. Porém, ela é mantida acesa de forma artificial por algumas entidades da história, e por isso o mundo ao redor também é artificial, pois é uma era que já está definhando.
E nós também estamos. O jogador começa o jogo como um morto-vivo. Quando a chama começou a ser mantida acesa de forma artificial, criou-se uma maldição no mundo, em que todos os humanos se tornaram imortais. Porém, a cada vez que alguém morre, perde-se uma parte de si, de suas lembranças, de sua humanidade. Por isso, todos são mortos-vivos destinados a virarem vazios, que são cascas do que essas pessoas uma vez já foram.

Nesse cenário, o jogador é um morto-vivo de uma profecia. Essa profecia conta que um dia, um morto-vivo escolhido irá superar todos os desafios e reacender a chama que está se apagando, de forma que quebre a maldição da imortalidade. Parece interessante, não?
Porém, nada irá mudar. A era da chama vai continuar artificialmente e eventualmente a chama vai ameaçar apagar de novo. No jogo existem dois finais. Um que o jogador decide acender a chama e o outro que o jogador não acende, dando lugar para a era da escuridão
Ambos os finais são apoiados por duas Serpentes Primordiais, seres (MUITO FEIOS) que existem há muito tempo. Porém, cada uma delas vai tentar te convencer que o lado delas é o melhor. Cada uma de um lado, o jogador deve tomar a decisão por si.

Nada importa, e tá tudo bem.
Dito tudo isso, parece ser uma escolha bem difícil né? A era da chama não tá nada legal, muita gente sofre e o mundo está literalmente morrendo. A era da escuridão não necessariamente é algo ruim, até é especificado que seria o tempo que os humanos finalmente reinaram, mas ainda assim seria tudo completamente diferente, uma mudança brusca pela primeira vez. E as pessoas tendem a não gostar de mudanças bruscas.
Porém, Dark Souls é sobre isso. Ter decisões extremamente difíceis para tomar, e perceber que elas não importam nem um pouco.
Entenda, o mundo de Dark Souls é cíclico. Não importa o que aconteça, não se pode impedir o fluxo do tempo. Se o jogador decidir acender a chama, ela irá se apagar depois de um tempo de novo. Se o jogador decidir que a chama se apague, alguém irá acendê-la de novo. Fora que se ninguém acende-la, foi estabelecido em Dark Souls que a chama simplesmente se acende sozinha.
Basicamente, nada importa. O propósito do protagonista não importa, o protagonista não importa, o destino final não importa, todos estão condenados independente de qualquer coisa. Então, pra que continuar vivendo?
Dark Souls e a depressão
Como estabelecido antes, nada importa no mundo do jogo. Então, para que continuar jogando?
Dark Souls oferece uma visão de mundo extremamente niilista, em que tanto os personagens como o próprio mundo estão melancólicos. Isso acontece pois o jogo em si trata sobre a depressão.
Toda a analogia de você ir se perdendo de si e se tornar vazio, de não ter propósito, do literal mundo está morrendo e literalmente nada importar, tudo é feito para que o jogador desista de jogar. Dark Souls é um jogo que não quer que você o jogue, não quer que você progrida, não quer que você persista.
No momento em que uma pessoa desiste de jogar Dark Souls, o seu personagem naquele mundo vira apenas mais um Vazio que não conseguiu completar a sua missão, e perdeu a sua humanidade. Alguém que sucumbiu à depressão.

Porém, mesmo o mundo sendo literalmente cruel, injusto e melancólico, alguns continuam a jornada. E aí que tá o ouro do jogo. Dark Souls é sobre o nada e encontrar sentido no nada. Na sua jornada jogando, você encontrará pessoas com quem vai interagir, pode fazer amizades e se divertir. Vai experienciar momentos felizes, momentos bonitos e momentos tristes e trágicos. Porém, você vai até o fim. Pois a vida é assim, não podemos parar. E Dark Souls nos ensina isso. Mesmo que no momento nada faça sentido, não podemos parar de persistir e continuar vivendo.
Uma das obras que Dark Souls se baseia tanto esteticamente quanto em sua história é Berserk. Lá, temos também um protagonista sem propósito, que encontra sofrimento gigantesco enquanto vive. Porém, mesmo sua mente querendo morrer, seu corpo nunca desiste. Essa pulsão humana para a vida que o Miyazaki quis e conseguiu incorporar em Dark Souls.
Assim, o jogo é simplesmente incrível. É bizarro a quantidade de pessoas que falam na Internet como um único jogo conseguiu salvar a vida delas. Que estavam em um lugar ruim, e quando jogaram Dark Souls, conseguiram encontrar forças para prosseguir na vida e melhorarem. Para mim, Dark Souls também está nesse lugar. É muito mais que um jogo, é uma experiência terapêutica, é um entendimento para a vida.
A atmosfera que esse jogo cria, a dificuldade do mundo quando você entra pela primeira vez, a curiosidade que ele desperta, tudo é excepcional. Espero que tenha conseguido passar um pouco dessas ideias para você leitor, de como esse jogo incrível, que se tornou um dos meus favoritos, conseguiu me tocar. Se tiver a oportunidade, jogue e tenha suas próprias experiências.

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