"Como eu Quero" e "Meu Erro" - A rainha dos relacionamentos tóxicos no rock nacional
- Marina Branco
- 29 de jul. de 2024
- 6 min de leitura

Quantas vezes você já ouviu uma música e pensou, mais do que em quem escreveu, na pessoa para quem aquela letra foi escrita?
Por trás de (quase) toda canção que amamos e cantamos todos os dias, estão milhares de homens e mulheres que serviram de inspiração para suas letras - boas, ou ruins. Mas e se eu te disser que duas das músicas mais famosas do rock nacional são sobre uma só mulher, mesmo sendo de bandas diferentes?
Essa é a história de “Como eu Quero”, da banda Kid Abelha, e “Meu Erro”, de Paralamas do Sucesso. Ou melhor - é a história de Malu.
As duas músicas, que você talvez tenha interpretado (como tanta gente por aí) errado a vida toda, foram escritas em momentos diferentes, por pessoas diferentes e sobre relacionamentos diferentes, mas ambas são sobre ela. E, ao contrário do que parece ser, a dupla de canções não é nada romântica: Malu parece ser, no final das contas, a grande vilã de duas histórias de amor.
Como eu Quero - Paula Toller
O maior hit da história da banda, que foi lançado em 1984 e colocou o Kid Abelha no topo das paradas, foi escrito pela vocalista Paula Toller, e pelo baixista Leoni. Entre várias conversas sobre a vida amorosa de Carlos Beni, baterista do grupo na época, os dois amigos e ex namorados chegaram a uma conclusão comum: o músico vivia um relacionamento abusivo com a manipuladora Malu, que já foi até empresária da banda da qual os três faziam parte.

Foto: Novabrasil
Observando atitudes com as quais não concordavam, os dois encontraram na música que os une a maneira perfeita de falar com seu amigo, principalmente porque a turbulenta relação do casal ameaçava tirar - como tirou - o baterista da banda de uma vez por todas. Isso porque Malu não gostava do jeito de ser de Carlos, e muito menos de sua profissão, o incentivando a todo momento a sair do Kid Abelha e abandonar a música.
Por ser muito polêmica, a música quase ficou de fora do álbum “Seu Espião”. Foi só no final do processo de lançamento que a banda decidiu incluir a composição que marcaria sua história, e a colocou no lado B do disco de vinil produzido. E aqui, cabe destacar outra maneira de diminuir o escândalo: a letra da música abre margem para muitas interpretações, fazendo com que muitos ouvintes a enxerguem como uma música romântica e apaixonada - muito longe do que ela realmente quer dizer.

Foto: Correio Braziliense
“Diz pra eu ficar muda
Faz cara de mistério
Tira essa bermuda
Que eu quero você sério”
A música já começa imprimindo por completo a visão que os autores têm de Malu. Em um jogo de palavras inicial que faz parecer que Carlos a pressiona e até mesmo cala, eles representam as brigas incessantes do casal, onde ele tenta a todo momento diminuir, em vão, as reclamações da esposa. E aqui, fica guardada uma das frases mais geniais da música inteira. Escondida sob a interpretação sensual de que ela estaria pedindo para o amado tirar a roupa porque ela o deseja de verdade, está o real pedido para que ele troque a bermuda por uma vestimenta mais composta. Que troque a vida de palcos e música por um emprego julgado por ela como sério.
“Tramas do sucesso
Mundo particular
Solos de guitarra
Não vão me conquistar”
E é por não gostar da carreira musical dele, que ela o lembra a todo tempo que as histórias de fama do mundo ao qual ele pertence não a impressionam em nada. Nem elas, e nem a música dele, que constrói um universo do qual ela não é parte.
“Eu quero você
Como eu quero”
No mesmo jogo de palavras escondidas, a dualidade do “como” chega para tornar uma frase manipuladora e obsessiva em algo delicado e romântico. A palavra, que por muitos pode ser interpretada como um adjetivo de intensidade que afirma que a mulher deseja muito seu parceiro, na realidade vem para dizer que ela o quer à sua maneira. Eu quero você - mas é do meu jeito. Como eu quero.
“O que você precisa
É de um retoque total
Vou transformar o seu rascunho
Em arte final”
E esse jeito tem forma, desenho e cor. Ela sabe exatamente quem ela quer que ele se torne, e está preparada para pegar quem ele é, e transformar no que ela enxerga como ideal. Na obra de arte idealizada por ela. E, daqui em diante, a música passa a manipular o músico (e o ouvinte) ao ponto de fazer parecer que ele precisa da salvação e da alteração dela. Que é isso que o vai salvar.
“Agora não tem jeito
Cê tá numa cilada
Cada um por si
Você por mim e mais nada”
Se essa música foi escrita como um aviso para Carlos, esse é o trecho que deixa tudo o mais claro possível. Com consciência própria do que faz, a moça afirma que o homem está preso em um problema por estar em um relacionamento com ela. Relacionamento esse que foge à regra da reciprocidade e do famoso “eu por você e você por mim”, e desenha um “cada um por si” que só vale para ela. É ela por ela, ele por ela, e ninguém por ele.
“Longe do meu domínio
Cê vai de mal a pior
Vem que eu te ensino
Como ser bem melhor”
Em uma finalização que resume a letra inteira, ela o chama para melhorar. Para deixar a vida que ele leva, e que para ela é tão errada, e ser do jeito que ela quer que ele seja. Porque, longe do domínio, controle e manipulação dela, ele estará muito pior. Pouco abusivo, né?
Meu Erro - Paralamas do Sucesso
Mas a história que não foi tão de amor assim não durou para sempre. O casal acabou terminando depois da saída de Carlos do Kid Abelha, e Malu namorou com o vocalista da banda Paralamas do Sucesso, Herbert Vianna. Para alguém que não concorda com o mundo musical, é no mínimo curiosa a escolha de namorar mais um músico, mas foi o que ela fez.

Foto: Rock 80 Brasil
Dessa vez, a história e a música que sai dela são bem diferentes. Se a primeira foi um alerta escrito por terceiros, “Meu Erro” é o mais pessoal possível, escrita pelo próprio Herbert, e demonstrando total consciência (e discordância) em relação à situação em que se encontra. Aqui, ele não só enxerga suas próprias decisões como erros, mas também rememora o que já sabia do relacionamento dela com o baterista, por conta da proximidade que sempre existiu entre as duas bandas. Proximidade tanta que, tempos depois do término com Malu, Herbert acaba por se casar com Paula, vocalista do Kid Abelha.
Enquanto o que Carlos pensa sobre a relação ficou em segundo plano, nessa história o protagonista é personagem principal e narrador, e não deixou nada por contar. No livro “Os Paralamas do Sucesso - Vamo Batê Lata”, Herbert diz que Malu queria que ele fosse algo que não era. Que tinha vergonha do fusca que ele dirigia, e não queria de jeito nenhum que ele fosse músico, assim como foi com o ex.

Foto: RYM
“Eu quis dizer, você não quis escutar
Agora não peça, não me faça promessas
Eu não quero te ver, nem quero acreditar
Que vai ser diferente
Que tudo mudou”
Começando de um jeito muito parecido com a primeira canção, Herbert fala sobre as dificuldades de comunicação nas brigas, onde ele tentava expor os problemas, e ela não ouvia. Só passou a ouvir, pedir mais uma chance e prometer mudanças que tornariam tudo diferente, depois que ele desistiu da relação, e não quis mais contato.
“Você diz não saber
O que houve de errado
E o meu erro foi crer
Que estar ao seu lado bastaria
Ah, meu Deus, era tudo que eu queria
Eu dizia o seu nome, não me abandone”
Sem dúvidas, a moça tinha algo a mais que prendia os homens com quem se relacionava a ela, e é nesse trecho que Vianna traz à tona o conflito pelo qual passou durante o processo de término. Ao mesmo tempo em que queria muito estar com ela, queria que desse certo e tinha medo que ela o abandonasse, sabia agora que estava errado em acreditar que ela seria suficiente para fazê-lo feliz, mesmo tendo que abrir mão de tudo aquilo que ela desgostava nele.
“Mesmo querendo, eu não vou me enganar
Eu conheço os seus passos
Eu vejo os seus erros
Não há nada de novo
Ainda somos iguais
Então, não me chame
Não olhe pra trás”
E nessa história, o final é diferente - os abusos e vontades dela são interrompidos pelo término, decisão do compositor, que enxerga tudo com clareza e afirma conhecer suficiente sua amada para saber quem ela é e como age. Por isso, mesmo querendo estar com ela, ele escolhe tomar consciência de sua situação, e se afastar dela.
É aqui que mora o “easter egg” da outra canção: quando o cantor afirma que vê os erros da moça, que não há nada de novo e que ambos ainda são iguais, ele busca nos relacionamentos passados dela uma postura parecida, e tira dali a conclusão de que nada vai mudar.
Já é de se esperar que seja difícil ter duas músicas de amor escritas sobre você por compositores diferentes. Mas, sobre relações diferentes, e ambas cheias de críticas e quase sem amor, é quase um bingo de relacionamentos tóxicos. Uma coisa é inegável - a rainha das relações abusivas rendeu à música nacional duas de suas melhores e mais marcantes canções.