Salvador ao nível do mar I Capitães da Areia
- Marina Branco

- 18 de ago.
- 6 min de leitura

“Olhou para o trapiche. Não era como um quadro sem moldura. Era como a moldura de inúmeros quadros. Como quadros de uma fita de cinema. Vidas de luta e de coragem. De miséria também.”
Capitães da Areia é o que significa Salvador
Não a Salvador que se vê nos livros e filmes. Não aquela que estampa a beleza que o mundo vê na Bahia, entre baianas de acarajé e fitas do Senhor do Bonfim. Não aquela que se enche de praias lindas, faróis deslumbrantes, e sons de berimbau.
Essa é a Salvador que aparece no cinema, nas telonas, no mundo. É o Pelourinho colorido visto quando, lá fora - ou mesmo aqui dentro -, se pensa em Salvador. É a que fica estampada nos programas de televisão. Os que prometem contar o “mundo visto de cima”. E contam.
Capitães da Areia, nas telas, faz o contrário. Enquanto o mundo vê Salvador vista de cima, é nesse filme que se encontra a cidade vista de baixo. Ao nível do mar, mais precisamente, de jeito que seja possível tocar a areia que os meninos lutam para ter. É a Salvador das ruas, e de quem só tem ruas para viver.
É a Salvador de quem luta para sair do “baixo” em que a sociedade os colocou, e ainda assim encontra certa beleza em não estar na cidade alta. É buscar a história diária da cidade que, de tão separada que pode ser, tem andares - e escolher contar a história de quem mora com a areia da praia.

Capitães da Areia é a história de meninos. Crianças. Oito, dez, quarenta. Tantas que já foram parte deles, e um tanto de outras que um dia ainda serão. São os meninos que moram na rua, e fazem parte dela. Que ocupam um trapiche, e se organizam como a família que nunca tiveram, para sobreviver e achar alguma vida no meio disso. É a história de como eles vivem.
É a história de Pedro Bala. Do líder incansável que representa toda resistência que nasce na capital baiana. Da figura forte, determinada, e acima de tudo, protetora. Daquele que sabe e conhece a realidade que vive, e faz de tudo para proteger os que ama das dores dessa realidade. Daquele que, nas telonas, tem suas nuances de imperfeições - e violências - da obra original suavizadas. E suas dores, justiçadas.
É a história de Professor. João José, se me permitir. Do menino que teve a rua destinada a ele, mas merecia a sala de aula. Da representação da inteligência que mora em cada criança menosprezada por quem só enxerga um tipo de instrução, dentro de moldes especificados e deixados fora do alcance de todos eles. Da sensibilidade de quem sofreu tanto, mas soube ser duro o suficiente para ser ainda mole por dentro. Soube ser homem o suficiente para ainda ser criança. Soube ser resistente o suficiente para ainda saber ver beleza na vida.
É a história de Pirulito. De toda a fé que mora no menino baiano. Da reza, da crença, do “podem me tirar tudo que nem tenho, menos as rezas que aprendi”. Do enxergar, em meio à injustiça que quebraria tantas almas boas, um propósito maior. Do saber aceitar não entender. É a personificação do sagrado brasileiro, que não mora nas igrejas. Mora nas ruas, nos “pai nossos” de cada menino que nunca teve um pai para chamar de seu, mas encontra nas entrelinhas do acreditar, um para ser dele e de todos os outros.
É a história de Boa Vida. Da “vida boa” que todo baiano tem - ainda que um pouco. Da música, do samba, do amor à vida. Da preguiça que tanto dizem da Bahia mundo afora, e da realidade que de preguiça nunca foi. Sempre foi, no entanto, o colorido que se acha em um mundo cinza. As notas musicais e os mergulhos salgados que se acham entre a poeira do trapiche e a falta de comida.
É a história de Almiro. Da vida que vai embora por ter sido esquecida com o tempo. De quem não teve quem cuidar dele, e por isso teve jogadas fora as oportunidades que ainda viriam. Os destinos, os futuros, as possibilidades. De cada menino doente que, por não poder se curar como nos lugares Altos se curam, desceu mais abaixo do que nunca, e se encontrou debaixo da terra, e do mar.
É a história de Barandão. De cada um que viu sua pessoa ir embora na dor da impotência. Na dor do não poder ajudar. Na dor da incapacidade. De quem não pôde trazer a quem amava, a solução que já existia, mas sempre pertenceu aos altos. De quem, é justo dizer, não pôde sequer amar quem amava. De quem não é parte da sociedade para ser bem visto, quem quer que seja, mas é parte para ser bem julgado. De quem não recebe nada, mas recebe preconceito. De quem tem mais uma luta a lutar, como se as suas não fossem suficientes.
É a história de Sem Pernas. Da criança que precisou crescer rápido demais. Do menino que, nascido diferente, precisou correr mais rápido para sobreviver do que qualquer um que tenha nascido com pernas inteiras, rodas, carros. Do que não deixou de ver a beleza na vida, nem a pureza no coração. Dos outros, e dele. De quem precisava da injustiça e da mentira para sobreviver, mas nunca coube nas obrigações de enganar e fazer sofrer. De quem cansou de sofrer, e decidiu se libertar de Salvador, em Salvador. De quem pulou do Elevador Lacerda pedindo por liberdade. Porque é, Bala, “a liberdade é como o sol. É o bem maior do mundo.”. E ele foi até o sol.
É a história de Volta Seca. Do cangaço que brilha na cultura, mas vive no dia a dia. Do tiro que sai das mãos de crianças, e forma o hereditário em meio ao que o mundo diria cruel. Da herança não da violência, mas da sobrevivência. E também das vivências e referências que passam pelo meio.
É a história de Gato. Dos meninos que ainda cedo recebem a sexualidade de um mundo sem classificação indicativa. E sem limites, por favor. Dos que aproveitam os poucos prazeres que lhes são permitidos, e aprendem a viver dentro e fora do que eles permitem. Dos meninos que aprendem o que é amar entre verdades e mentiras, e tentam ser adultos já sendo mais adultos que meninos.
É a história de João Grande. De quem sai da areia, e decide ir ao mar. De quem abandona cada grão que o prende ao soteropolitano, e decide navegar nas praias lindas de cartões postais. De quem conhece a realidade dos cartões, o sol que racha, e a fome que dói. De quem precisa do mar - e de sua boa vontade - para continuar.
É a história de Zé Fuinha. Dos meninos que perderam suas famílias, e encontraram novas ainda cedo. Dos que sentem falta da mãe, e não têm mãe, pai ou vó para buscar. Dos que se tornam donos de si no auge dos menos de cinco porcento da vida. Dos que não sabem se podem contar com a porcentagem por inteiro.
É a história de Dora. Dora mãe. Dora irmã. Dora noiva. Dora esposa. Dora estrela. Das meninas que, não bastando verem a vida ao nível do mar, viam por olhinhos femininos. Fortes, lúcidos, potentes. Desmerecidos. Das que precisavam de muito mais do que luta para se provarem. Das que não lutavam só com o alto, mas também com o baixo. Das que lutavam com a vida, e com as violências que chegam a elas por existirem - até mesmo de quem mais as ama. Das que aprendem a amar entre não saberes, e encontram no que não sabem, títulos de tudo aquilo que não tiveram, e aprenderam a ser. Das meninas que, aos quinze, dezesseis, foram mães de quarenta, irmãs de vinte, noivas de dez, esposas de um. Estrelas de uma vida que, curta que foi, ensinaria tantas que chegaram à porcentagem máxima sobre o amor, e o amar.
Capitães da Areia é contar a história, as prisões, os desafios, as lutas, as alegrias, as lealdades, as maturidades, os amores, as perdas e os ganhos de quem caracteriza a Salvador verdadeira. De quem, lá de baixo, vê o mundo inteiro acima, presos à areia. E de quem, na areia que os prende, aprende a navegar. A serem Capitães da Areia, e viverem Salvador ali - ao nível do mar.








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