top of page
moqueka

Cercear corpos: confinamento e claustrofobia em O Bebê de Rosemary (1968)

Arte de capa feita a partir de imagens do filme Bebê de Rosemary

“Isso não é um sonho. Isso realmente está acontecendo”.

O Bebê de Rosemary estreou nos Estados Unidos em junho de 1968. No filme, um jovem casal composto por Rosemary (Mia Farrow) e Guy Woodhouse (John Cassavetes) vive e segue a cartilha do sonho americano após mudarem-se para o coração de Nova Iorque, num apartamento luxuoso do centro desta cidade que é a capital do mundo. Mas há um problema: o cotidiano da dupla é constantemente atravessado e interrompido por um outro casal, os idosos Minnie e Roman Castevet, que trazem consigo (além de uma comicidade sem igual) toda uma legião de amigos e vizinhos de terceira idade que também habitam o prédio que recém recebeu os Woodhouse, o famoso edifício Bramford.


Rosemary e Guy no apartamento no filme O Bebê de Rosemary
Rosemary e Guy no apartamento - Reprodução

Como qualquer outro jovem casal heterossexual estadunidense dos anos sessenta, Rosemary e Guy decidem ter o seu primeiro filho. Inicialmente, chegamos a nos empolgar e nos contagiar pela alegria que ambos  —  principalmente Rosemary  —  irradiam diante de tantas mudanças. É realmente empolgante; nos projetamos e fruimos desse prazer do casal que faz tudo exatamente como deveria ser. Isto é: há uma grande satisfação em seguir os anseios da cultura.


Ao longo do filme, fica cada vez mais nítido o cerceamento de liberdades e as expectativas impostas à jovem protagonista; entretanto, podem passar despercebidos certos elementos que gritam, esbravejam: Rosemary não é livre, Rosemary não será livre, a mulher não é livre. Essas máximas parecem confirmar-se ao decorrer do longa-metragem, ao passo em que a jovem dona de casa até consegue engravidar, mas não sem ser brutalmente enganada, traída e violentada por todos ao seu redor. Pior: isto não se cessa na concepção do bebê (que descobriremos ser, na verdade, inumano), mas continua e até se agrava conforme a gestação prossegue. A tragédia de Rosemary é a tragédia da mulher.


Rosemary na cama no filme O Bebê de Rosemary
Rosemary na cama - Reprodução

O grande problema da condição de Rosemary é justamente este: ela pode até ser vítima de um complô satânico que a abusa, a engana e a explora, mas tudo isso só pôde acontecer porque, desde o início, ela se encontrava nas garras do patriarcado  —  não apenas na figura do ganancioso Guy Woodhouse, que está disposto a fazer qualquer coisa pelo sucesso pessoal, mas pela cultura como um todo.


É aí que acredito residir a potência da chamada Trilogia do Apartamento de Roman Polanski, a tríade composta pelos filmes Repulsa ao Sexo (1965), O Bebê de Rosemary (1968) e O Inquilino (1976): a solidão e a claustrofobia das grande capitais até assustam por suas formas de cerceamento, mas só são possibilitadas pela própria estrutura social que as sustentam. A arquitetura opressiva de Londres-Nova-Iorque-Paris só existe enquanto projeção do que já habita na cultura: para Rosemary e Carol (Repulsa ao Sexo), o patriarcado; para Trelkovsky (O Inquilino), a xenofobia e o velado antissemitismo.


Não há nada que possa salvar Rosemary. Nem o filme, tampouco o livro escrito por Ira Levin pode oferecê-la uma saída para a sua miserável condição. É nesse sentido que Polanski foi genial: a partir da fatídica cena do abuso sexual sofrido pela protagonista, o que se segue até os momentos finais do longa é um sentimento de paranoia pujante, embora por vezes imperceptível ou inconsciente.


É incrível a sensação de ansiedade que a câmera nos causa. Cada plano de Rosemary sozinha, vagando pelas ruas de Nova Iorque ou seguindo sua (imposta) rotina é acompanhado de uma terrível sensação de que há algo ou alguém espreitando pelos cantos do rolo de filme. Algo ou alguém, sim, nas extremidades, na borda, na esquina, num canto qualquer, prestes a surpreender-nos. Eis aí o terror construído por Roman Polanski.


Rosemary na cozinha no filme O Bebê de Rosemary
Rosemary na cozinha - Reprodução

Se Polanski, diretor do filme, havia conseguido uma indicação ao Óscar de Melhor Filme Estrangeiro com A Faca na Água (1962), foi apenas com Repulsa ao Sexo (1965) e Cul-de-sac (1966) que o jovem cineasta conseguiria verdadeiramente projetar-se no cenário hollywoodiano. Os próximos passos da sua carreira pareciam lógicos: o estrelato em Hollywood, a consolidação, a consagração.


Ainda dentro da cartilha ideológica do sonho americano, o diretor, assim como suas personagens no filme de 1968, prosseguiu e consolidou-se na indústria cinematográfica. Aqui estamos, portanto: hoje, o nome “Polanski” pode até despertar-nos as mais asquerosas reações  —  uma consequência direta do que o cineasta polonês fez em vida  — , mas isso só é possível graças à grandiosidade do seu cinema. Não há decepção que não seja antecedida por uma grande admiração.


É importante salientar que, embora eu prossiga com uma interpretação que considera a lente do diretor em O Bebê de Rosemary como uma lente de denúncia ao patriarcado e ao sofrimento feminino, uma possível crítica de cinema feminina ou feminista pode discordar com veemência dessa leitura do mais famoso filme de Roman Polanski. É possível dizer que a lente pode até ter a pretensão de libertar Rosemary, mas acaba falhando e descamba num male gaze que se faz gozar do sofrimento feminino.


Quando postulada nestes termos, a crítica ao longa-metragem ganha uma força enorme; porém, ainda é possível pontuar que O Bebê de Rosemary seria “misógino” ou “hipócrita” por ser realizado por um diretor que é publicamente conhecido por um terrível caso de pedofilia e estupro (nunca tendo sido punido por estes crimes, se desconsiderarmos a simples e desejável condição de nunca mais poder pisar nos Estados Unidos). Nesse caso, podemos cair na armadilha de dar o discurso como dado a partir da identidade ou do lugar em que se discursa, ou seja, corremos o risco de não analisar o filme como ele nos aparece, o que recai num artifício acrítico de pânico moral.


Rosemary no filme O Bebê de Rosemary
Rosemary - Reprodução

Entendamos, de uma vez por todas, que a obra de arte contém aspectos essenciais da vida do artista. Negar isso seria de um racionalismo muito rasteiro. O que pode ser defendido, porém, é que possamos apreciar a arte como o ser vivo que ela é: no caso do cinema, a vida que se cria a partir da lente e da montagem, e como ela se distancia e chega a assassinar o seu próprio autor. O artista nada mais é que um criador expropriado de sua criação por sua própria criação.


É por essa via de pensamento que afirmo que O Bebê de Rosemary constrói dois espaços igualmente repressivos: o interno, num apartamento ou prédio, e o externo, na imensidão da cidade grande. Eles têm mais semelhanças que diferenças. Por exemplo, ambos possuem “agentes” do mal que espreitam e observam a vida de Rosemary, buscando podá-la, cerceá-la e ulteriormente controlá-la. Ela pensa poder transitar livremente por estes espaços, mas a realidade é que a sua própria condição (gravidez), na sociedade patriarcal, representa uma prisão  —  ainda mais quando falamos de um caso de estupro conjugal, coerção, violência psicológica e química, enganação e gaslighting, o “fazer de louca”.


Lembro-me da palavra utilizada para a gravidez no espanhol, o embarazo, que possui uma ambivalência radical de sentidos; da mulher prenhe ao barrar-se. Nada mais fidedigno para a condição de Rosemary Woodhouse. Seu destino é ainda mais trágico: depois de tudo que sofreu sob o jugo dessas pessoas, seu marido incluso, ela aceita o seu fardo  —  o papel materno cai como uma luva em suas mãos; vitória da modernidade.


Rosemary no filme O Bebê de Rosemary
Rosemary assustada - Reprodução

Posts recentes

Ver tudo

1 comentário


iasdornelas
há 2 dias

Visão genuinamente ampliada da arte, vale a pena investir nosso tempo para ler sua semiótica. Atravessa as facetas do óbvio e preenche o espaço perdido entre a lente da câmera e a tela da tevê. Lindo.

Curtir
bottom of page