O Olhar Háptico e a fisicalidade dos corpos a partir de Desejo e Obsessão (2001)
- Vinícius Nocera

- 29 de set.
- 5 min de leitura
Escrito por: Vítor Rocha e Vinícius Nocera

Figura proeminente do cinema francês no final da década de 90 e início dos anos 2000, Claire Denis é uma diretora que tem a trajetória marcada pela proposta sensorial e fora dos padrões. Entre o catálogo da cineasta, uma obra que se destaca neste apelo estético que foge do comum é Desejo e Obsessão (2001), filme estrelado por Vincent Gallo e Béatrice Dalle que conta a história de dois canibais ao lado de seus parceiros.
Característico dos filmes de Denis, a francesa filma a partir de um olhar háptico contemporâneo (GONÇALVES, 2012), utilizando planos mais fechados, especialmente planos-detalhe, para aproximar o olhar do espectador da fisicalidade dos corpos em cena. Esta abordagem cria uma série de sensações e texturas incomuns ao público, mudando o modo como se percebe as imagens da obra.
O que temos aqui é um tipo de visualidade que poderíamos qualificar, juntamente com Gilles Deleuze e Félix Guattari, como háptica. Isto é, um tipo de imagem que induz um espaço e um modo de percepção mais tátil do que visual, uma imagem que demanda uma percepção próxima, funcionando pelo toque. Na visualidade háptica, afirmam os filósofos franceses, os olhos funcionam, eles mesmos, como órgãos de toque, como uma forma de contato. Mais do que ser projetado numa estrutura centralizada ou num espaço ilusionístico profundo, o olhar tende aqui a se aproximar do corpo da imagem, a correr por sua superfície, hesitando e demorando-se sobre inúmeros efeitos de superfície. (GONÇALVES, 2012. p. 78)
A câmera de Denis se debruça muitas vezes por suor, sangue, pele, entre outros fluídos e materiais para aproximar o espectador e o que está sendo filmado, quase contaminando o público com a sujeira daquele universo. Dentro dessa lógica, a tactilidade sensorial permite que a diretora brinque com as tensões e expectativas que a sua obra cria, conforme aponta Vieira Jr. (2014).
Pensemos nos planos-detalhes de Desejo e obsessão, como por exemplo, os do corpo seminu do jovem delinquente que invade a residência de Coré (Beatrice Dalle), instantes antes que seja literalmente devorado por ela. Nesse aparente prelúdio de um ato sexual, temos alguns takes de um abdome coberto de leve e quase invisível penugem (quase ao alcance de nossas mãos), cuja duração se estende pelo tempo que possamos mentalmente acariciá-lo, antes que o ataque faça jorrar uma incalculável quantidade de sangue em cena. Ou ainda os closes do marido durante o incêndio que consome o corpo de Coré, totalmente encoberto pelas chamas que, em primeiríssimo plano, quase nos cegam. (VIEIRA JR., 2014. p. 1228)

Essa construção imagética da fisicalidade não se dá apenas pela intensificação sensorial, mas também por sua carga simbólica e desconfortante. Os corpos filmados por Denis não estão apenas presentes em sua materialidade tátil, eles atravessam fronteiras e confrontam o espectador com o que há de mais visceral, instável e inquietante. É nesse ponto que podemos pensar a noção de corpo abjeto, conforme desenvolvida por Julia Kristeva (1982).
Para a autora, o abjeto é “aquilo que perturba a identidade, sistema e ordem [...] não respeita fronteiras, posições, regras. É aquilo que define o que é totalmente normativamente humano do que não é” (KRISTEVA, 1982). A abjeção, portanto, diz respeito àquilo que rejeitamos para constituir o eu, mas que insiste em retornar, nos ameaçando por dentro. No caso de Desejo e Obsessão (2001), as figuras de Coré e Gallo encarnam essa ideia de corpo abjeto transitando entre limites do que é e não é normativo. Desta forma, os canibais, mesmo em momentos diferentes, já que a figura masculina passa a obra se reprimindo e a feminina se libertando, acabam transgredindo as mesmas fronteiras: o desejável e o repulsivo; humano e monstruoso; erotismo e violência.
A partir desta ideia, Denis coloca os personagens como monstros, mas também como objetos de desejo. O canibalismo está muito associado ao aspecto sexual do filme, com as principais mortes do longa-metragem iniciando como atos sexuais. Um exemplo da visão turva entre sexo e morte é a repressão do Dr. Shane Brown (Vincent Gallo) junto à sua esposa June (Tricia Vessey). Em todas as cenas de teor sexual do casal, que está em lua de mel durante a trama do filme, fica claro como o marido está contendo sua natureza, dando a entender que ele sempre está à beira de comer a companheira a qualquer momento.
O filme ilustra a figura do seu protagonista como um monstro, por exemplo, quando está brincando com sua esposa. Em um terraço, eles estão se abraçando e Shane (Vincent Gallo) começa a fingir ser um monstro indo atrás de June (Tricia Vessey), que age como uma donzela em perigo. Enquanto a interação dos dois acontece, Denis filma a cena atrás da grade em frente ao terraço, o que dá a entender que June está aprisionada no relacionamento junto ao ser abjeto.

A ideia de um ser abjeto, um monstro, foi estudada pelo psicólogo Carl Jung ao definir o conceito de sombra para a psicologia analítica. Para Jung (1964), ao mesmo tempo que o homem tem a Persona, uma máscara que um indivíduo veste para revelar apenas uma parte de si para os outros, existe aquilo que é rejeitado, a sombra de um sujeito.
Uma pesquisa mais acurada dos traços obscuros do caráter, isto é, das inferioridades do indivíduo que constituem a sombra, mostra-nos que esses traços possuem uma natureza emocional, uma certa autonomia e, consequentemente, são de tipo obsessivo, ou melhor, possessivo. A emoção, com efeito, não é uma atividade, mas um evento que sucede a um indivíduo. Os afetos, via de regra, ocorrem sempre que os ajustamentos são mínimos e revelam, ao mesmo tempo, as causas da redução desses ajustamentos, isto é, revelam uma certa inferioridade e a existência de um nivel baixo cia personalidade. Nesta faixa mais profunda o indivíduo se comporia, relativamente às suas emoções quase ou inteiramente descontroladas, mais ou menos como o primitivo que não só é vítima abúlica cie seus afetos, mas principalmente revela uma incapacidade considerável de julgamento moral. (JUNG, 2008. p. 21)
Essa Sombra representa a escória, a parte que alguém não suporta sobre si, e acaba reprimindo no mais profundo de seu inconsciente. Porém, mesmo que esteja escondida, ela pode se manifestar, pois ainda se constitui como uma parte do sujeito.
Claire Denis decide explorar através do canibalismo uma sensibilidade do que é reprimido. A Sombra se manifesta como uma fronteira entre o delicado e o brutal, gerando contrastes do abjeto que geram incômodos ao espectador, tanto por seu caráter pútrido inerente, como também por uma sensação de deslocamento para uma intimidade entre dois corpos.
A cena em que Coré (Béatrice Dalle) seduz um rapaz para seu quarto e transa com ele exemplifica essa dualidade de sensações. Os beijos e lambidas suaves se transformam em mordidas e feridas cada vez mais profundas, ao mesmo tempo que novamente retornam para a intimidade antes observada.
Essa alteração entre extremos, realizada de forma abrupta, faz com que as imagens se tornem imprevisíveis. Será uma cena delicada ou brutal? Torna-se ambos, com uma atmosfera confusa, mas certeira.
Denis se aproveita dessa ambiguidade para direcionar a câmera sob seus atores, de um modo que cada plano capte o contato entre dois sujeitos com seus incômodos e desejos, ao mesmo tempo que projeta essas sensações para o espectador.

Referências:
Vieira Jr., Erly. Por uma exploração sensorial e afetiva do real: esboços sobre a dimensão háptica do cinema contemporâneo Revista FAMECOS: mídia, cultura e tecnologia, vol. 21, núm. 3, 2014, pg. 1219-1240. Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul.
Gonçalves, Osmar. Reconfigurações do olhar: o háptico na cultura visual contemporânea. 2012.
Kristeva, Julia. Powers of Horror: An Essay on Abjection. 1982.
TROUBLE EVERY DAY. Direção: Claire Denis. Produção: Denis Freyd. França: Wild Bunch, 2001.
Jung, Carl Gustav. Aion: estudos sobre o simbolismo do si-mesmo. 7. ed. Tradução de Dom Mateus Ramalho Rocha. Petrópolis, RJ: Vozes, 2008.








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