CRÍTICA | Springsteen: Salve-me do Desconhecido é a consolidação de uma visão íntima
- Roger Caroso

- há 2 dias
- 6 min de leitura

Após finalmente alcançar sucessos críticos e comerciais, acompanhamos a luta de Bruce Springsteen para tirar o álbum Nebraska (1982) do papel, além de lidar com uma série de questões mal resolvidas de seu passado, que seguem atrapalhando a consolidação pessoal, profissional e emocional dele no presente.
O filme chega as telonas com o intuito de não ser mais um Bohemian Rhapsody (2018), ou seja, outra cinebiografia sem vida, que repete a mesma fórmula batida e cansada, mas será que ele foge realmente dessa má fama? O campo das biografias musicais no cinema é muito vasto, por mais que tenha recebido uma má fama, cada vez mais, autores produzem histórias únicas e que diferem do arquétipo clássico.
Para embarcar nessa viagem no tempo, Jeremy Allen White encarna o "Boss" a partir de uma persona introspectiva, de poucas palavras, mas que esconde muita coisa dentro das jaquetas de couro. O diretor Scott Cooper não é novato no gênero, por mais que não seja exatamente a recriação da vida um artista, Crazy Heart (2009) certamente faz parte dos ensinamentos necessários para chegar mais maduro em Springsteen: Salve-me do Desconhecido (2025).

Que o sub-gênero é batido, todo mundo já sabe. Obras recentes, como I Wanna Dance with Somebody: A História de Whitney Houston (2022), Back to Black (2024) e Bob Marley: One Love (2024) apostam no estilo clássico, buscando compilar momentos marcantes da carreira do artista, através de um olhar melodramático, forçado e pedante.
Sempre apresentando essa pessoa como um talento jamais antes visto, que tem uma índole inquestionável, mas que foi induzida ao mal caminho pelas pessoas errada, só que agora, com o poder do amor do público e de seu/sua companheiro(a) conseguiu se recuperar e agora realiza um show marcante. Os filmes Ray (2004) e Johnny & June (2005) são exemplos excelentes de tudo isso e foram muito bem recebidos e celebrados em seu tempo.
Mas pouco tempo depois disso, foi lançado o filme que deveria ter posto um fim a tudo isso, A Vida é Dura: A História de Dewey Cox (2007). O trio: Jake Kasdan, Judd Apatow e John C. Reilly reimaginam todo esse universo de clichês, através de uma história ridícula, que engloba os “momentos de chave” de diversos artistas, das mais diferentes décadas e que se constrói de forma tão séria quanto suas premiadas inspirações.
Por mais que esse seja um tópico muito bom, o tema aqui é de uma outra vertente dessa classe de obras, a dos filmes que apostam em período específico para abordar é detalhar. Enquanto os outros exemplos tentam contemplar uma vida inteira em duas horas, aqui os longas se limitam a um recorte temporal específico e buscam extrair o máximo deles. O excelente Love & Mercy (2014) faz isso de forma brilhante, mesclando dois momentos distintos da vida do saudoso Brian Wilson, gênio por trás do The Beach Boys.
Contudo, o recente Um Completo Desconhecido (2024) certamente é a melhor comparação possível. Visto que mergulha de cabeça um período fundamental de quatro anos na vida do grande Bob Dylan e trazendo um olhar muito menos engrandecedor do Sr. Zimmerman, mas sim, algo mais humano, banal e falho, algo que definitivamente combina com Bruce Springsteen.

Na abordagem da vez, temos acesso ao período de mais ou menos um ano, em que após conseguir números cada vez melhores com os álbuns e turnês de Born to Run (1975), Darkness on the Edge of Town (1978) e The River (1980), Bruce se vê sozinho, mesmo estando no lugar onde cresceu.
Os sentimentos da volta para casa, misturados com a vastidão da solidão, amplificam uma série de emoções das quais ele havia suprimido com o passar dos anos. Esse turbilhão de sensações traz uma inspiração diferente nele, algo que Bruce precisa capturar de alguma forma, um grito, que de um jeito ou de outro, tem que sair do peito dele.
A partir de tudo isso, ele constrói o que se tornaria o álbum Nebraska (1982). Uma completa ruptura dentre tudo que ele já havia lançado, com uma pegada completamente crua, despida e verdadeira. Para isso, ele precisa tomar atitudes controversas, como insistir nas gravações originais, que tinham sido feitas de forma semi-amadora, além do rompimento com a sua já consolidada E Street Band.
Assim, utilizando como inspiração a perspectiva das pessoas que realizam trabalhos braçais, as obras de Flannery O’Connor, o filme Bandlands (1973) de Terrence Malick, os assassinatos cometidos por Charles Starkweather, e talvez mais importante, as memórias de sua infância. A relação conturbada com o pai se torna uma das forças que movem o longa, transicionando o presente com o passado.

O disco criado por Springsteen rompe com tudo que ele tinha feito antes e causa estranhamento para ouvintes de primeira viagem que conheciam apenas seus outros trabalhos, mas em meio de uma obra tão única, por que seguir em um caminho tão normal?
Claro, Salve-me do Desconhecido consegue apresentar aspectos únicos que consegue o diferenciar dos outros do subgênero. Principalmente quando se trata de mostrar esse isolamento e angústia que se tornam arte, além da dificuldade de ver essa visão tão íntima de consolidar em algo. O que era provisório, só um teste, cresce dentro dele, o já estabelecido ganha novos contornos pessoais e as “novas velhas” interpretações não agradam ou passam a verdade necessária.
Então, por que não desenvolver uma obra que tente trazer essa veracidade também de uma forma única? Exemplos não faltam, as múltiplas facetas de Bob Dylan em Não Estou Lá (2007), a autenticidade através da genuidade de Kneecap (2024), o mundo visceral e surreal de Better Man (2024) ou até do caos contido de The Doors (1991). Ou seja, por mais soturno e espontâneo que tenta ser, falta esse molho para a obra.

Sobre Jeremy Allen White, Hollywood tem um daqueles nomes dos quais precisa se agarrar, porque não vai tardar dele sair vencendo o Oscar. Não deve ser dessa vez mas deve chegar.
Decididamente ele é um cara que vai provando as suas facetas. Na TV, entre 2011-2021 brilhou como o coadjuvante Lip Gallagher em Shameless, mas o estrelato veio a partir de 2022, protagonizando a série The Bear, como o complicado Carmy Bearzatto.
Nos cinemas, os elogios vieram de fato ao interpretar o trágico Kerry Von Erich em Garra de Ferro (2023), quando chamou muita atenção como coadjuvante. Mas agora chegou a vez de ser o centro das atenções também nas telonas.
Tendo os marcantes olhos azuis escondidos nas lentes escuras para parecer mais com o personagem título, Allen some no papel. Maneirismos, poses e principalmente a voz, um trabalho de mestre que faz dele um objeto de estudo que é interessante e profundo, mesmo sem precisar de exaltar ou ser excessivo na atuação. Seu tormento sereno é com certeza uma das performances do ano.

Do elenco de apoio, Jeremy Strong segue na rota dos empresário coadjuvantes, aqui como Jon Landau, que também era um dos produtores e principais confidentes do astro. Seu papel aqui é de possibilitar que as criações de Bruce saiam do papel, seja dentro do estúdio, seja convencendo a gravadora a lançar algo tão diferente.
Stephen Graham e Gaby Hoffman encarnam os pais. Eles definitivamente têm um peso fundamental para a construção da história, mas ao mesmo tempo, os recortes escolhidos parecem minar essa influência, caindo nas tentativas de forçar a emoção, sem ter construído uma boa relação.
Enquanto Odessa Young tem a missão de compilar diferentes mulheres que passaram pela vida de Springsteen, mas no filme são personificadas através de Faye, uma mãe solo que o ajuda a pelo manos tentar desenvolver novas relações.

Com uma abordagem pessoal, mas não tão única, Springsteen: Salve-me do Desconhecido constrói o retrato de um artista que vive ao mesmo tempo um caos interno e uma pungência artística. Utilizando a coragem de se expor de forma frágil, como parte de uma desconstrução de um astro.
Jeremy Allen White embarca nessa roupagem, compondo uma versão compelida e conflitante, entrando de vez na corrida pelas premiações da temporada. Para os coadjuvantes, o caminho é ainda mais aberto, mas é possível acreditar em boas indicações também ao Jeremy Strong.
Dessa forma, o filme encara esse recorte na vida do astro de uma maneira que não foge do que o público já está acostumado há muito tempo, mas que ao menos faz um aceno a tentativa de ser mais pessoal e menos exagerado. Algo que certamente combina com o perfil desenvolvido por Springsteen ao longo de todas essas décadas.







Comentários