Amar é heróico? O que aprendi assistindo 'Café com Canela'
- Kian Shaikhzadeh
- 19 de nov. de 2023
- 5 min de leitura
Atualizado: 8 de jun. de 2024

“É mágico. cinema é mágico”, diz Margarida a Violeta no filme “Café com Canela”.
“Todo mundo diz que cinema serve pra você esquecer da vida, dos problemas e viver no mundo mágico, longe da sua realidade. eu não acredito muito nisso não. (...) é no escuro, diante daquela imagem dominada pelo som, que você consegue ficar, finalmente, diante de si e escutar tudo aquilo que você nunca teve coragem de falar para si mesma. e é nessa hora que você se encontra e se perde de uma vez por todas. (...) aquele que sentou na poltrona nunca mais vai levantar. e aquele que levanta é novo, é outro. é isso. cinema pra mim é isso.”
Filme de estreia da dupla Ary Rosa e Glenda Nicácio, “Café com Canela” (2017) rapidamente se consagrou como grande referência do cinema baiano contemporâneo. A obra é uma das seis escolhidas para a lista Moqueka de filmes que se passam na Bahia e pode ser assistida por assinatura na Amazon Prime, ou de graça (e com anúncios) no Plex.
Em sua trama, Café com Canela intercala a vida de duas personagens: Violeta, que com muita delicadeza e simplicidade cuida da avó, dos filhos e trabalha vendendo coxinhas, e Margarida, uma ex-professora quem, após perder seu filho, se separa do marido e vive isolada dos amigos e familiares. Sujeira toma conta da casa de Margarida enquanto ela não consegue deixar de reviver, com imensa dor, os momentos que um dia a fizeram feliz.
“Não sei, mas não sei quantas vezes já tentei ligar para Margarida”, comenta uma de suas amigas no início do filme. “ligo, bato na porta, mando carta e Margarida não tá nem aí pra mim.” Em outro momento, acompanhamos o ex-marido dela, Paulo (Aldri Anunciação), que faz compras no mercado e pede a um rapaz que as deixe na casa de Margarida. Mas apesar do carinho e dos cuidados, nenhum desses familiares e amigos consegue contato real com ela, ou levá-la a superar sua profunda dor.
Quantos de nós não temos amigos que, assim como Margarida, sumiram. Pessoas que estiveram tão próximas, eram tão alegres, até que, por razões as quais não conseguimos compreender (ou aceitar) se isolaram. Apesar de nossas boas intenções, podemos nos sentir frustrados com tentativas mal-recebidas de contato. Assim como as ligações e cartas ignoradas, os tomates, cebolas e bananas que Paulo, com tanto amor comprou, apodrecem na cozinha de Margarida.
“Um dia cansado de ver tanto sofrimento, Deus enviou para a menina um anjo. um anjo vestido de mulher que, com muita delicadeza e muita simplicidade, salvou a menina daquela dor eterna”.
É Violeta, que em uma de suas saídas para vender coxinha, passando de casa em casa, bate na porta de Margarida. Reencontrar, após mais de uma década distantes, aquela mulher naquele estado de mau trato consigo chocou ela.
“Coitada. deve tá sofrendo até hoje com o que aconteceu”, comenta Violeta ao seu esposo após o encontro. “pior que eu tô em falta com ela. preciso urgentemente fazer uma visita pra essa mulher”
“Lá vem você se meter na vida dos outro novamente, Violeta”, responde Marcos, o marido.
“Dos outro? ah, Dona Margarida né ‘os outro’ não. essa mulher aqui falante, alegre, brincalhona que você casou, namorou, que teve filho, não foi sempre assim não. (...) quando a desgraça bateu na minha porta, foi Dona Margarida que me ajudou, e eu vou sim fazer uma visita a ela.”
“Tá bom. tá. faça o que quiser. não sobrando pra mim…”
“Pode deixar, não vai sobrar”
A decisão de Violeta pode parecer simples, mas fazer uma visita a uma velha amiga que está passando por dificuldades é contra-cultural em nosso contexto. As pessoas seguem os ditames implícitos de uma divisão entre “a gente” e “os outro” em que qualquer iniciativa é vista como problemática, ou tola.
O que sinto, assistindo ao filme, é que a ação de Violeta é heróica. Heróica em sua coragem, seu senso de responsabilidade e em sua disposição de amar. Em sua entrevista ao “Speaking Freely”, bell hooks, autora, artista e ativista antirracista estadunidense discute o que ela entende por heroísmo:
"Sempre pensamos em nossos heróis como tendo a ver com a morte e a guerra. e quando pensamos em Joseph Campbell e em toda a ideia da jornada do herói, raramente é uma jornada que envolve amar. trata-se de feitos que têm a ver com conquista, dominação... então parte do que eu queria dizer às pessoas é que vivendo como vivemos, em uma cultura de dominação, verdadeiramente escolher amar é, em si, heróico.
Apesar das tentativas anteriores, é Violeta quem se convida para entrar na casa da velha amiga para tomar um café e consegue ter, enfim, uma conversa com ela. Violeta prepara um café com canela e não demora para ir direto ao ponto: “a senhora tem todo direito de sentir sua dor. mas não dá pra se entregar desse jeito, mulher. olha pra essa casa, isso não é de Deus. olha pra senhora”.
“Não se intrometa na minha vida, menina!!”, protesta Margarida. A atitude intrusiva de Violeta faz do primeiro encontro das duas um conflituoso. Afinal, a ex-professora ainda está muito apegada às suas memórias com o filho.
Na primeira sequência do filme, Margarida assiste a um filme no cinema. Mas é sua própria vida, suas memórias que ela vê refletidas na tela. Ela se emociona enquanto lida com a presença/ausência que aquelas imagens evocam. O que está ali? O que já não existe mais?
Sandra Benites, educadora, pesquisadora e curadora, do povo Guarani, descreve, em entrevista publicada na Revista ZUM, o conceito de “imagem”, evidenciando o que ela (não) contém:
“Existe um termo guarani para imagem: ta’anga, palavra que significa “algo capturado” e que, por isso, se tornou uma imagem que não é verdadeira, que não é a coisa em si. (...) Também temos nera’anga, que designa uma coisa que já não é mais, como se fosse uma sombra, ou réplica — imagens suas que não são você de verdade. Nera’anga pode ser um reflexo, uma fotografia ou um desenho produzidos sem a presença da pessoa retratada. Por isso, indica uma coisa que não tem mais relação com o que é representado.”
“Esses dois termos, ta’anga e nera’anga, vêm de a’angá, que, por sua vez, vem de angue, que quer dizer ‘alma que não não existe’. Para nós, angue é como se fosse seu rastro. Não é mais você. Pode ser algo que você deixou ou algo que vem do lugar onde você viveu. Mas é só um vestígio de sua presença, e não o seu espírito.”
Sem perspectiva de futuro, a visão de Margarida tornou-se embaçada. Ela se apega a reviver os rastros e vestígios de vida que um dia teve, até que Violeta, com muita delicadeza, muita simplicidade e insistência, ajuda, passo a passo, dia após dia, a amiga abrir os olhos à beleza que está à sua volta.
O que o filme “Café com Canela” faz é exatamente isso: abrir os olhos do público a uma diversidade de belezas nas personagens, em sua forma de falar, na fotografia, nas paisagens e nos detalhes, nas músicas que preenchem todo o filme e numa história que, mesmo cercada de morte, pulsa vida e ânimo.
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