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Videodrome, fascismo, psicanálise e esquizoanálise: uma profecia de David Cronenberg

Atualizado: 27 de jun.

Imagens coladas e editadas do filme Videodrome de David Cronenberg
Arte: Rafael Vaccaro Madrid

A década de 1980 começou com um sucesso inesperado. O terror corporal abordado por  David Cronenberg em Scanners - Sua Mente Pode Destruir (1981) arrastou multidões aos cinemas estadunidenses. Entretanto, foi apenas  em Videodrome - A Síndrome do Vídeo (1983) que o diretor aprofundou sua sensibilidade estética, política e psicológica — tudo isso numa trama que condena a humanidade ao jugo fascista do progresso tecnológico.


O filme nos introduz a Max Renn, o presidente de um canal de TV sensacionalista da cidade de Toronto. Harlan, funcionário responsável por captar transmissões de satélite ilegais, o apresenta ao Videodrome, um programa não roteirizado que mostra pessoas sendo brutalmente torturadas e mortas. Nicki Brand — mulher com quem Max tinha relações sexuais — é profundamente seduzida  por essas transmissões e faz questão de o atrair também para esse poço de sadismo.


Relação homem-tela: castração da humanidade


A humanidade se relaciona com as telas de modo diametralmente oposto ao modo em que ela se relaciona com as câmeras. Dziga Vertov, diretor e teórico de cinema soviético, explica como a lente de uma câmera — o que ele chama de cine-olho — é muito mais capaz de capturar o caos dos movimentos reais da vida que o próprio olho humano. A partir disso, o cineasta pode se transformar junto com o que por ele é registrado: se trata de uma relação homem-tecnologia onde o homem tem papel ativo.


Na relação homem-tela, o ser humano é eternamente castrado pelas vontades do aparato tecnológico. A máquina se rebela, controla o sujeito e não oferece soluções para tal situação. Nesse aspecto, Cronenberg é genial: a castração de Max Renn poderia ser apenas simbólica, mas se torna visceralmente real por meio do body horror, que a representa como uma invaginação na barriga do personagem — seu poder, representado pelo falo, está ceifado. Não há nada que o salve, uma vez que o mesmo masculinismo que o levou ao Videodrome agora o reduz ao seu objeto.


Imagem editada do filme Videodrome de David Cronenberg
Arte: Rafael Vaccaro Madrid

Futurismo, fascismo e desejo


E se o homem já foi dominado pela tecnologia, isso não pode ser por acaso. O Manifesto Futurista (1909), de Filippo Marinetti, foi a consolidação de uma tendência crescente no meio artístico: um caminho traçado desde as revoluções burguesas e acirrado entre o surgimento dos Parnasianos e os Modernos. Segue trecho:


A literatura exaltou até hoje a imobilidade pensativa, o êxtase, o sono. Nós queremos exaltar o movimento agressivo, a insônia febril, o passo de corrida, o salto mortal, o bofetão e o soco.
Nós queremos glorificar a guerra — única higiene do mundo — o militarismo, o patriotismo, o gesto destruidor dos libertários, as belas ideias pelas quais se morre e o desprezo pela mulher.
Imagem editada do filme Videodrome de David Cronenberg
Arte: Rafael Vaccaro Madrid

Foi assim que se deu a proclamação de Marinetti: que se destruam os fantasmas do passado e se glorifique a identificação do homem com a máquina, a velocidade e o dinamismo do novo século. É nítido, porém, como essa pretensão do futurismo não se trata de um ideal emancipador, mas uma verdadeira condenação para toda a humanidade — que está condenada ao jugo do progresso tecnológico. Voltando para o longa de Cronenberg, essa é a mesma realidade de Max: a tela sacia seus desejos, mas também o domina e o destrói.


É assustador como, apesar da dimensão catastrófica dessa conjuntura, Max e Nicki desejam o Videodrome. Sim, desejam: em todo o seu prazer, violência e sofrimento. A distopia tecnofascista criada por Cronenberg opera como um grande realizador dos desejos das duas personagens — eles desejam a violência, eles desejam o fascismo.


Essa carga libidinal do fascismo havia sido antes exposta pelo filósofo francês Gilles Deleuze, que também destacou o poder propagandístico da tecnologia na relação objeto-sujeito da configuração homem-tela. Sendo o ser humano uma máquina desejante, também desejaríamos o fascismo — e, sendo pacientes de um aparato castrador, nos tornaríamos menos livres. É em consequência dessa submissão que Max Renn decide encerrar com sua própria vida enquanto repete o grande lema do Videodrome:

Imagem editada do filme Videodrome de David Cronenberg
Arte: Rafael Vaccaro Madrid
Vida longa à nova carne.

O suicídio do protagonista de Videodrome — A Síndrome do Vídeo (1983) é o suicídio de toda uma humanidade que capitulou diante do discurso fascista do avanço tecnológico. O fascismo se automatiza em duas vertentes: pela máquina de guerra e pela máquina de propaganda. Na ficção, Max Renn se rende frente à máquina de propaganda — na realidade, uns e outros se rendem e fogem da máquina de guerra. O suicídio do escritor e pensador judeu Walter Benjamin representou, no século XX, uma rendição do ser humano diante da materialização do Manifesto Futurista de Marinetti; e esse ideal estético moderno foi representado com maestria na obra-prima do também judeu David Cronenberg.


Talvez, em tempos de ascensão neofascista e advento de tecnologias que submetem o ser humano à passividade — como as inteligências artificiais — , possamos entender a complexidade do suicídio de Max e Benjamin. Quiçá, ainda, sejamos todos um Max Renn encurralado pelo Videodrome; e um Walter Benjamin encurralado pela Gestapo.


Imagem editada do filme Videodrome de David Cronenberg
Arte: Rafael Vaccaro Madrid

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