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O ILUMINADO | A multifacetada obra prima do terror

Atualizado: 8 de jun. de 2024


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Stanley Kubrick é um dos maiores diretores americanos de todos os tempos. Sua excelência na arte de dirigir fica evidente não só por sua qualidade e perfeccionismo aplicado em seus longas, mas também pela versatilidade de gêneros cinematográficos que ele se aventura.


Até então, o diretor americano já havia feito filmes de guerra, de época, comédia e até ficção científica, mas terror era um território que nunca tinha sido explorado pelo cineasta. Após comprar os direitos de adaptação para o cinema do livro “O Iluminado” de Stephen King, Kubrick realizou seu primeiro e único filme de terror, mas que foi o suficiente para mudar completamente o gênero de cabeça para baixo.


Sobre o que é o filme?

O Iluminado conta a história de Jack Torrance (Jack Nicholson), um professor de educação infantil que perdeu seu emprego e decide aceitar um trabalho para cuidar de um hotel gigantesco no Inverno, período em que o estabelecimento fica fechado por causa do frio insustentável para os negócios. Jack se muda para lá com sua família, sua esposa Wendy Torrance (Shelley Duvall) e seu filho Danny Torrance (Danny Lloyd). Lá no hotel, coisas macabras começam a acontecer e assombrar a família, que vai descobrindo os segredos do Hotel Overlook, além de gradualmente perderem o controle sobre o sobrenatural e sobre eles mesmos.


Com esse texto, dá pra ter uma noção básica da sinopse do filme. Porém, o longa conta com inúmeras interpretações e narrativas diferentes que se complementam entre si, que junto da direção incrível do Kubrick contribuem para a criação de uma obra extremamente complexa e multifacetada.


A Solidão e a pressão


Possivelmente a interpretação mais básica, entretanto, importante de O Iluminado é que a trama trata sobre solidão e suas influências na saúde mental. O motivo do protagonista querer ir para o hotel, na verdade, é que lá ele acredita encontrar paz e sossego para conseguir finalmente escrever seu livro, tarefa que Jack Torrance nunca conseguiu realizar.

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Foto: Reprodução/ O Iluminado


Essa interpretação fica bastante evidente por ser dita no início da história pelo contratante de Jack para o trabalho sobre como a solidão pode ser prejudicial para a cabeça das pessoas. O personagem ainda conta que outro homem que trabalhou lá antes havia tido uma espécie de surto psicótico e assassinou sua família e então se matou após passar algum tempo no hotel, fato que entrega certa tensão para os espectadores.


O sentimento de solidão é passado durante o filme, principalmente pela sensação do hotel ser gigantesco e supostamente só terem 3 pessoas lá. Kubrick utiliza os próprios personagens de formas criativas para explorar a casa, de forma que acabam também demonstrando a imensidão que eles estavam dentro. Uma coleção de cenas que reforçam essa ideia são as de Wendy explorando o hotel junto das de Danny andando de triciclo pelos corredores, que parecem ser intermináveis. O espectador vê o personagem por cima dos ombros, e enxerga as viradas de corredor junto com ele, de forma que nunca se sabe o que vai estar a seguir.



Essa visão de solidão é reforçada também pelo próprio autor do livro em que o filme foi baseado, ao dizer que sua história contém elementos dos seus medos mais profundos, como o alcoolismo e a desintegração da família. Assim como o protagonista da trama, o escritor também já sofreu com o vício em álcool, e tinha medo de um dia perder o controle de vez e acabar machucando sua família.


Este fato é referenciado no longa quando Wendy menciona que Jack já havia deslocado o braço do filho ao beber demais, e por isso ele parou de beber antes de entrar no hotel. O próprio fato do protagonista do filme aceitar o trabalho para conseguir escrever seu livro em paz acaba se ligando diretamente ao papel de um escritor que tenta fugir de seus demônios e encontrar inspiração em meio à pressão de lançar o próximo sucesso.


Stephen King afirma que foi inspirado a escrever sua obra ao passar uma noite no Stanley Hotel, em Estes Park, Colorado. Em seu site, ele escreveu: “O hotel parecia perfeito, talvez até o arquetípico cenário para uma história de fantasmas. Naquela noite eu sonhei com o meu filho de três anos correndo através dos corredores, olhando de trás por cima dos seus ombros, de olhos arregalados, gritando. Ele estava sendo perseguido por uma mangueira de incêndio. Eu acordei com um tremendo pulo, suando por todo o meu corpo, com quase uma polegada de cair da cama”

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Fotos: Reprodução/O Iluminado e © JIM WEST / ALAMY STOCK PHOTO


Massacre indígena, história dos Estados Unidos e ciclo do mal


Uma característica que é possível de se observar nas produções do Kubrick é como ele leva o “baseado em um livro” no sentido mais literal possível, seus filmes apenas relembram o material original, mas tomam diversas liberdades criativas. Isso aconteceu em obras como Laranja Mecânica, em que o diretor decidiu simplesmente mudar o final de uma forma que a mensagem virou o contrário do que o autor do livro quis passar, em Dr. Fantástico que ele pegou um livro sério sobre guerra e transformou em uma comédia e em O Iluminado, não foi diferente.


Kubrick decidiu explorar mais do potencial sobrenatural da história, além de simplificar um pouco os personagens apostando em seus simbolismos, visto que achava as construções deles no livro muito complicadas. Dessa forma, cada um no filme representa mais um símbolo do que tenta emular uma pessoa real, decisão que irritou profundamente o autor do livro Stephen King, mas se provou ser uma aposta muito bem recompensadora.


Talvez o personagem mais importante do filme inteiro seja o próprio Hotel Overlook. É estabelecido que ele foi construído em um local que costumava ser uma reserva indígena, e a direção faz questão de evidenciar isso o tempo todo com o cenário. A magnitude daquele hotel, sua arquitetura complexa e apenas resquícios de toda uma cultura que fora destruída para sua construção. O hotel, essencialmente, é um cemitério indígena, e o filme utiliza isso para recriar em um cenário menor a história dos Estados Unidos, em que os povos indígenas foram dizimados para a construção do país, que são representados na trama pelo mal branco.


Isso é evidenciado diversas vezes durante o longa, seja na ambientação com meros resquícios indígenas do hotel, como se fossem uma recompensa pelo extermínio, seja pelas atitudes racistas de alguns personagens, seja pelo sangue, figurativamente e literalmente mostrado, daqueles que morreram no hotel, mas que apenas as mortes dos brancos são lembradas.



Enquanto o protagonista gradualmente enlouquece no seu processo de escrever seu livro, ele acaba encontrando o bar do hotel, que antes tinha sido mostrado como vazio, visto que só a família do Jack estava lá. A primeira vez que ele vai lá sozinho, ele murmura para si como gostaria de um drink, e aparece um barista magicamente lá. O estranho é que o protagonista sabe o nome dele, mesmo que não tenha sido dito em momento algum antes.


Na segunda vez que ele vai lá, o local dessa vez está repleto de pessoas, todas trajadas de roupas chiques. É interessante notar os simbolismos do local. Lá, além de só ter pessoas brancas, Jack pede especificamente por um “bourbon de pessoas brancas”, porém em sua pronúncia ele fala a palavra “burden” que significa fardo em inglês, fazendo referência ao poema racista “O Fardo do Homem Branco” de Rudyard Kipling, que busca justificar o neocolonialismo americano como fardo de um nobre empreendimento americano.


O local faz uma clara alusão ao inferno ou à algum lugar maligno, visto também que o próprio barman se parece demais com a imagem humanizada do demônio (peço desculpas ao ator), além de estarem lá pessoas terríveis, como o próprio protagonista e o garçom, que reagem com nojo ao saber que o Danny estava se comunicando com uma pessoa negra.


Falando no garçom, o personagem acaba se esbarrando com ele, que se oferece para ir ao banheiro limpá-lo. Porém, Jack acaba o reconhecendo, após tentar se lembrar muito, como o antigo zelador do hotel que assassinou a própria família, coisa que o garçom contesta, dizendo que na verdade Jack sempre foi o zelador daquele lugar. Aqui existe uma sacada genial do Kubrick para a criação dessa cena.


No cinema, existe uma regra chamada regra dos 180º, que estabelece que ao se filmar duas pessoas ou mais, deve-se estabelecer um eixo de 180º entre eles e escolher um lado do eixo para filmar, que não deve ser quebrado, pois fazê-lo gera uma sensação de confusão na cena. Kubrick decide quebrar essa regra primordial do cinema aqui para enfatizar a confusão do protagonista ao deixar o próprio espectador confuso por conta da direção, propositalmente.



Essa construção de que Jack parece já estar familiarizado de certa forma com o hotel e suas particularidades acaba sendo relacionada com a cena final, em que é possível ver uma foto antiga dos membros do hotel de 1921 (a história se passa no final da década de 70), em que é possível enxergar o protagonista no centro dela fazendo o sinal do Belzebu, conhecido como demônio da gula. O interessante é que essa foto aparece logo no início do filme, mas os espectadores não a notam por ela estar distante e sem foco, diferente da cena final em que acaba justamente focando nela.


Por fim, essa interpretação é confirmada pelo próprio diretor durante uma entrevista, em que ele pensa Jack como parte de um ciclo de reencarnação do mal, em que ele faz parte da história sangrenta do hotel. Isso explica a resposta do garçom para o protagonista, e também por isso, Jack acaba sendo mais do que o personagem de pai e marido, mas também se torna a representação de toda maldade e assassinatos do hotel, por isso está estampado na foto de 1921.


Essa força do ciclo de maldade e da história dos Estados Unidos acaba também sendo reforçada quando os únicos personagens que morrem são o cozinheiro do hotel que ajuda Danny diversas vezes, e também único personagem negro do filme, além do próprio Jack, que morre mas deixa essa sensação de que o ciclo ainda não foi quebrado.

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Foto: Reprodução/ O Iluminado


Traumas de família e a perda da inocência


Na trama de O Iluminado, Danny tem uma entidade junto com ele chamada de Tony, a qual ele chama de “um menino que vive na minha boca”. O filme estabelece o conceito dos Iluminados como aqueles que têm uma forte conexão com o sobrenatural, como Danny e o cozinheiro do hotel, porém Kubrick acaba abordando outra vertente a partir do pretexto do sobrenatural.


No início do filme, Tony fala com Danny que não quer ir para o hotel. Após isso, Danny acaba desmaiando e tem uma conversa com uma psicóloga, que avalia que o personagem já passou por algum trauma emocional, em que a mãe dele responde que Jack acabou voltando de uma noite após beber muito, e puxou ele com força, deslocando seu ombro, assim fazendo Jack parar de beber de vez. No livro, fica evidente que Tony é a versão mais velha de Danny, que tenta ajudá-lo a sobreviver aos eventos da casa, tentando assim dissuadi-lo de ir para lá, elemento que o Kubrick deixa em aberto.


É importante estabelecer que Jack era um professor de educação infantil, que por algum motivo que não é dito, perdeu seu emprego, além de ter problemas com bebidas. No casarão, tem um momento em que ele passa um tempo a sós com seu filho, e logo após isso, a criança sai de lá toda machucada chupando o dedo com uma cara de traumatizada, coisa que Wendy culpa o pai de Danny por seu histórico de já ter machucado ele. Após isso, Jack bebe pela primeira vez em 5 meses. Em seguida, Danny diz à mãe que foi uma suposta mulher que estava no quarto 237 que fez isso a ele, coisa que Jack debocha mas vai checar. Chegando lá, o pai se depara com uma bela mulher, que acaba se revelando como uma velha definhando. Essa virada acaba fazendo ele ir para o bar pela segunda vez.


Fica evidente que algo aconteceu quando os dois ficaram sozinhos. O pai bebe quando é acusado para esquecer o que fez, e bebe a segunda vez após confrontar a mulher do quarto 237. Quando Jack se depara com a mulher, ele está se deparando consigo mesmo, revelando um narcisismo pois ele acaba beijando ela nua. Porém, durante o ato ela acaba revelando quem realmente é, e assim o personagem acaba enxergando quem ele é de verdade, o fazendo ter que ir beber para esquecer.


Além disso, é importante notar que ursos são animais muito ligados ao Danny durante a história. O personagem diversas vezes aparece perto de ursos de pelúcia, símbolo nitidamente infantil, além de ter quadros com o animal em seu quarto. Após o pai ir para o bar pela segunda vez, Danny desaparece e Tony toma o controle do corpo, o que simboliza a perda da inocência de Danny para a substituição do seu eu mais velho, Tony, depois de sofrer tamanho trauma.


O que acontece após isso é perturbador. Quando Wendy está fugindo de Jack depois dele surtar de vez, a mulher se depara com muitas visões de coisas macabras do hotel. Em uma dessas portas, Wendy vê uma cena bizarra: um homem velho está supostamente tendo relações sexuais com um urso de pelúcia em uma cama, e isso choca a mãe mais do que tudo.

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Foto: Reprodução/ O Iluminado


Essa linha complementar do filme que o Kubrick evidência a perda da inocência de Danny e a descoberta de Wendy sobre o abuso sexual de Jack com seu filho. Durante o filme, Wendy fala sobre o acontecimento do deslocamento do braço da criança como se fosse um acidente. Com o tempo, ela cada vez mais atribui a devida culpa à Jack pelo ocorrido, até que quando finalmente aceita o que aconteceu, ela consegue enxergar o que estava diante dela desde sempre.


Isso faz sentido para explicar o motivo de Jack ter perdido seu emprego de professor de educação infantil, além de cenas estranhas do filme em que ele checa o quarto do filho antes de ver o próprio, com uma expressão meio estranha, além de bloquear os reflexos dos espelhos do corredor enquanto vai para o bar, para não ter que confrontar a verdade.


Ainda assim, é bizarro pensar que tal trama ficaria tão no subtexto de um filme. Porém, como dito antes, Kubrick é um diretor extremamente perfeccionista, e é muito difícil que algo em seu longa seja por acaso. Dito isso, no início do filme, Jack está lendo uma revista no último dia antes do hotel fechar. Ao analisar essa revista, é possível perceber que se trata de uma Playgirl, revista que exibe homens nus. Porém, essa edição em específico tem uma manchete bem estranha quando comparado com tudo que foi construído, em que nela está escrito: “INCESTO: Por que pais dormem com suas crianças”.

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Foto: Reprodução/ O Iluminado


Conclusão: O Iluminado é um dos filmes com mais simbologias e interpretações que eu já assisti. As diferentes formas que o Kubrick encontra para abordar situações que seriam tensas e assustadoras tanto na ficção quanto na realidade e que se complementam acabam por fazer esse ser um dos maiores e melhores filmes de terror de todos os tempos.


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