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CRÍTICA | A Hora da Estrela: Um retrato sobre a solidão

Atualizado: 8 de jun. de 2024

A hora da estrela, capa. Macabéa e flor

Você já se sentiu como um peixe fora d’água? Ou, ainda pior, sentiu-se sozinho no mundo e com a sensação de que as coisas escolheram não dar tão certo para você? Não se desanime,  porque, pelo menos, você não é Macabéa, a personagem principal de A Hora da Estrela, longa lançado em 1985.


Antes de tudo, é impossível falar de A Hora da Estrela sem falar de Clarice Lispector.

O filme é baseado no livro homônimo da autora, lançado em 1977, e conta a história da miserável e ingênua Macabéa, uma jovem nordestina de 19 anos que, após a morte da sua tia, passa a morar no Rio de Janeiro, arruma um emprego de datilógrafa e começa a dividir uma pensão com outras mulheres. 


O filme, contudo, marcou a estreia de Suzana Amaral como diretora e se consagrou como um clássico do cinema brasileiro, e, graças ao trabalho do projeto Sessão Vitrine Petrobras e do apoio da Cinemateca Brasileira, o filme foi agraciado com um trabalho incrível de remasterização, que proporcionou um tratamento excepcional em relação às cores e à qualidade da imagem. Mesmo que a captação do áudio tenha melhorado muito em relação à primeira versão, ainda deixa um pouco a desejar. Porém, arrisco a dizer que, para quem irá assistir a versão remasterizada pela primeira vez, talvez acredite que o longa lançado há quase 40 anos seja uma produção atual. 


Quase coincidentemente e um mês após da mais recente adaptação de um romance de Lispector para as telonas – A Paixão Segundo G.H –, o relançamento de A Hora da Estrela nos proporciona uma visão destoante entre as duas personagens femininas, e com roupagens diferentes também: enquanto G.H se desdobra em meio suas próprias reflexões e busca extrair o máximo de sua própria individualidade (e estranheza) em relação ao outro, Macabéa é o que é – e o antro de sua narrativa, é justamente ela não saber com certeza o que ela é


Diferentemente de G.H, que é uma mulher da elite carioca, a protagonista de A Hora da Estrela é caracterizada com um estereótipo nordestino (ou nortista, como a Macabéa do filme enfatiza) quase doloroso – desde a animalização de Macabéa, quase traduzida em um personagem típico de Graciliano Ramos, com hábitos considerados sujos e “sem jeito” quanto à clássica narrativa migratória das pessoas que vão para a capital em busca de melhores condições de vida.


Sendo órfã, vinda de origem humilde, semi-analfabeta e tendo uma criação puxada pela tia, a singularidade de Macabéa é justificada ao longo de sua história: é vista como desajeitada, suja, e “feia como um maracujá de gaveta”, todos os traços que a fazem se destacar, ou melhor, não se destacar em relação às outras mulheres de sua faixa de idade. A Macabéa desenhada por Clarice Lispector, traduzida por Suzana Amaral e interpretada pela incrível Marcelia Cartaxo, tem, como maior traço de personalidade, a ausência da noção do “eu”. 

Toda essa construção propositalmente miserável proporciona a quem acompanha a saga de Macabéa um olhar um tanto penoso, que torna a personagem tão infeliz a ponto de compadecer quem assiste, quanto um pouco relacionável – para quem é mulher, interiorana e nordestina como eu, pessoalmente, é quase impossível não calçar os sapatos da pobre Macabéa.


É nítido concluir que a composição dessa personagem parte da precariedade. Está sozinha em um lugar novo, não possui bens materiais e tampouco relações consideravelmente próximas de outras pessoas. Seu desajuste é consequência, portanto, da carência do afeto e do abandono emocional em sua criação. É solitária, e a sua ignorância faz com que, amargamente, não reconheça isso, gerando pensamentos de reafirmação de identidade que se baseiam em: “Sou datilógrafa, sou virgem, e gosto de Coca-Cola.”


Macabéa se olha no espelho e se imagina com vestido de noiva
Imagem: Reprodução

Há uma maneira particular de como a solidão da protagonista é retratada no longa. Em A Paixão Segundo G.H, o romance de Lispector é exposto em primeira pessoa, explorando as diversas facetas da protagonista. No livro A Hora da Estrela, há a presença do narrador Rodrigo S.M, uma figura masculina que reforça, inclusive, o contraste que humaniza ainda mais Macabéa como mulher – e como miserável. 


Na adaptação, o narrador é dispensado, fazendo com que o trabalho em ilustrar as diferenças sociais se faça por meio dos recursos cinematográficos: há o jogo de câmera que brinca com a ideia de submissão – mas ainda, de centralidade – entre Macabéa, os homens, as personagens femininas e ela mesma, que por vezes aparece como um reflexo literal da sua própria vulnerabilidade. 


A figura de um gato também não foi posta à toa – o gato, que por vezes aparece isolado e no centro da tela, é utilizado para representar o abandono da protagonista, tal como sua individualidade e suficiência, visto que, assim como Macabéa, ele também está sozinho.

Gato que representa a solidão de Macabéa em A Hora da Estrela, Clarice Lispector
Imagem: Reprodução

E mesmo que no filme o trabalho de sonoplastia peque em não dar uma universalidade um tanto mais densa à vida de Macabéa, tão bem executada na escrita de Clarice, Macabéa ainda tem uma relação com a música. Não conhece a palavra “cultura”, mas não deixa de se curtir e de se emocionar ao ouvir música clássica no rádio – A valsa Danúbio Azul é posta em dois momentos do filme, inclusive: o primeiro, em uma cena em que Macabéa dança alegre em seu quarto, e, o segundo, de uma maneira cínica, é utilizada para finalizar o enredo da protagonista. 


Outro recurso que pode estranhar é a falta de diálogos de Macabéa, que chega, inclusive, a irritar outros personagens da trama. Macabéa fala pouco, justamente por não saber o que falar. Das vezes que puxa algum assunto, reproduz as curiosidades que ouve na rádio Relógio, e, também, repete falas e alguns comportamentos (duvidosos) da colega Glória – mente para faltar ao trabalho, sem motivo específico. Chega a falar ao chefe que é um pai para ela, mesmo estando no período de teste do serviço. 


Quando está só, Macabéa se entrega a sua solidão e devaneios, e mesmo solitária, não tem como negar de que a personagem possui sonhos. Sua natureza faz com que a protagonista deixe sua inocência transparecer em meio aos outros e confesse alguns traumas, não parecendo sensibilizada com isso, e fazendo com que pareça “sonsa”. 


Os momentos mais tênues da alegria de Macabéa são quando ela está com o então “namorado”, entre aspas bem grandes, Olímpico. Como a protagonista, o personagem interpretado por José Dumont, vem do Nordeste e cai, por vezes, no clichê de homem ignorante (em vários sentidos). Olímpico, entretanto, é tão guiado por suas ambições, que se sente superior à Macabéa, a ponto de tratá-la mal frequentemente. Macabéa é ridicularizada ao dizer que queria ser artista de cinema, porque seus sonhos, de repente, são menos reais do que o de Olímpico, que almeja ser deputado. 


E assim como alguém que sai de um ambiente para outro, Macabéa está sozinha, como o peixe fora d’água. É questionada se não tem futuro, se não sabe de nada. Diz que não é acostumada a conversar, e pergunta a Olímpico o que faz para ter jeito, mas não há ninguém que lhe explique como. 

Fernanda Montenegro interpretando a cartomante Madame Carlota em A Hora da Estrela
Imagem: Reprodução

A primeira pessoa a ver Macabéa como gente, talvez tenha sido a infame cartomante-cafetina Carlota, interpretada pela grandiosa Fernanda Montenegro. Mesmo após Macabéa ser rejeitada por Olímpico, enganada pela colega Glória, e estar prestes a perder o emprego, a cartomante é capaz de tratá-la com humanidade e lhe oferecer a centelha positividade… pela única e última vez. A saga de Macabéa é tão miserável que mesmo o desfecho irônico foi capaz de destratá-la, ao som da clássica valsa Danúbio Azul.


Finalmente, não podemos dizer que Macabéa não era triste, porque Macabéa também não conhecia a felicidade. O filme propõe reflexões subjetivas sobre questões sociais, e não é à toa que o livro é entendido como o mais social de Lispector nesse sentido. 


A produção de Suzana Amaral revela a cruel impessoalidade dos outros à Macabéa. A montagem maldosa, dando a crer que talvez haveria alguma chance para a pobre no fim, fecha a possibilidade esperançosa que Carlota ofereceu. Não haverá quem chorar pela ausência de Macabéa, assim como não houve um narrador: Macabéa foi rejeitada pela vida ao ponto de, mesmo na morte, não ter nem quem queira contar a sua história.


Nota: 3,5/5

Macabéa correndo no final do longa A Hora da Estrela (remasterizado)
Imagem: Reprodução

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