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Por que Ursinho Pooh me fez odiar o domínio público?

Atualizado: 8 de jun. de 2024


Ursinho Pooh

Quando Alan Alexander Milne lançou o seu primeiro livro sobre as aventuras do Ursinho Pooh, em 1926, a última coisa que o autor britânico deve ter imaginado é que sua obra poderia se tornar parte de um grande esquema de esvaziamento da criatividade alheia.


Estatuto da Rainha Ana
Estatuto da Rainha Ana

Como habitante do Reino Unido, Milne teve a sua propriedade intelectual protegida pela primeira lei de direitos autorais no mundo, ‘O Estatuto da Rainha Ana’, datada de 1710. Esta lei disciplinava a concessão de patentes de impressão e direito de cópia por um determinado período, após o qual a obra cairia em domínio público. Tratava-se de grande inovação jurídica, uma vez que o privilégio dos editores era antes entendido como perpétuo. 


Ou seja, por um período determinado, somente o autor poderia usar o Ursinho Pooh em mídias oficiais. No entanto, em 2022, o primeiro livro caiu em domínio público nos Estados Unidos, visto que a lei do país americano estabelece uma data limite de 95 anos para as obras se tornarem de uso comum. No Reino Unido e no Brasil, por exemplo, o livro infantil de Milne permanece protegido por direitos autorais. Porém, foi necessário apenas um país para que a caixa de pandora fosse aberta.


Ursinho Pooh: Sangue e Mel


No dia 26 de janeiro de 2023, ocorreu o lançamento mundial de ‘Ursinho Pooh: Sangue e Mel’. O longa, dirigido por Rhys Frake-Waterfield, é uma versão “terror trash” do famoso personagem infantil.


Na trama do filme, Christopher Robin precisa deixar os animais do Bosque dos 100 Acres para ir à faculdade. Quando a vida dos personagens se torna difícil, eles precisam tomar decisões drásticas para sobreviver e acabam se voltando às suas raízes animalescas. Após isso, fazem uma promessa de nunca mais falar e juram vingança aos humanos e, principalmente, ao menino que os abandonou.


A reimaginação do clássico literário poderia se tornar uma obra interessante. Confesso que não sou (ou era) contra a utilização de obras em domínio público para subverter a mensagem original e criar algo novo ou uma substância que se destacasse além do pensado por outro artista. Porém, o que eu vi quando assisti ao filme era uma tentativa barata de vender, a partir de uma figura conhecida. Apenas a curiosidade foi necessária para que o longa se tornasse um sucesso de bilheteria, garantisse uma sequência e, mais tarde, todo um universo compartilhado com “contos de fadas macabros”.


Na minha cabeça, haviam muitas possibilidades de explorar a figura do Ursinho Pooh através do terror para discutir quaisquer questões que envolvessem os animais e, principalmente, o Christopher Robin. Existe uma teoria de que cada personagem dos contos de A. A. Milne representa um transtorno mental, sendo Pooh, o déficit de atenção e o transtorno obsessivo compulsivo (TOC).


A possibilidade de usar o horror para impulsionar uma alegoria e construir um novo sentido para a obra não passou nem perto do que o filme de 2023 fez. Lá, era só mais um slasher com efeitos mal feitos e um forte flerte à misoginia. Extremamente mal feito, o que era para ser um temido Ursinho Pooh maligno não passou de um protótipo de Michael Myers com síndrome de baixo orçamento. Talvez se o filme não se levasse a sério, a experiência poderia se justificar e ter uma recepção melhor, mas não aconteceu.


Ursinho Pooh
Reprodução/ Ursinho Pooh: Sangue e Mel

Criatividade em baixa


O uso de obras em domínio público nem de longe começou a ser feito por agora. A prática é tão antiga quanto a própria existência do cinema. De fato, grandes empresas, filmes e diretores não seriam o que são sem o uso desse recurso. Entretanto, enxergo o grande problema desta questão nos limites impostos pela falta de criatividade.


Utilizar um material pré-existente é um recurso, aparentemente, mais fácil de começar um novo projeto do que iniciar uma nova história do zero. Mesmo as produções que se baseiam em algo para criar uma história nova encontram relativa dificuldade, mas possuem um obstáculo menor em comparação com a escrita de um material original.


No entanto, Sangue e Mel foi o que faltava para elevar o meu ódio da mediocridade à metástase. Toda a possibilidade de contar novas histórias com personagens consagrados, subvertendo características consideradas intocáveis, ganhou um novo significado, que é o meu desprezo completo. 


Enquanto alguém que já escreveu fanfics e amava imaginar versões terror de outras histórias, o longa de Rhys Frake-Waterfield me causou uma repulsa singular. Precisei repensar minhas opiniões, que já estavam bem estabelecidas, para finalmente dizer que eu odeio o domínio público. Assim como autores morrem e não são esquecidos pelas obras que fizeram em vida, as próprias produções precisam morrer e serem lembradas pelos seus legados. Chega de reboot, remake ou continuações escritas por familiares.


Se assistir ao doloroso Pooh arrancador de sutiãs gerou uma hemorragia nos meus olhos, que incessantemente me imploraram para serem expulsos de minha órbita ocular, pensar na possibilidade de escrever um livro ou criar um personagem para usurparem minha criação após morrer me causa uma náusea excruciante. Qual o fetiche nisso? Eu ainda não entendi.


A originalidade devia ser mais valorizada pelo público. Ver algo novo, pensado sem amarras de um passado já escrito, é o que me deixa mais feliz no momento ao ver filmes. Claro, toda essa lógica não inclui adaptações que realizam traduções entre mídias ou reimaginações bem feitas. A revolta é somente aos péssimos realizadores. Inclusive, pode esperar que irei conferir todo o universo Pooh e estarei aqui para trazer meus pensamentos sobre essa grande tragédia. Amanhã minha opinião poderá ser outra, tanto faz.


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