Paprika – Qual o sabor oculto da nossa consciência?
- Ana Letícia

- 18 de abr. de 2024
- 5 min de leitura
Atualizado: 8 de jun. de 2024

Lançado em 2006, o longa foi a última obra do diretor japonês Satoshi Kon, responsável também pelos filmes Perfect Blue (1997) e Tokyo Godfathers (2003), e que veio a falecer em 2010. Paprika é baseado em um livro homônimo de 1993, escrito pelo autor Yasutaka Tsutsui, e é conhecido, inclusive, por inspirar obras do cinema ocidental, como A Origem (2010), dirigido pelo famigerado diretor Christopher Nolan.
Para quem já está habituado com o universo cinematográfico, não é muito difícil pensar em A Origem como uma referência em filmes de ficção-científica e que trazem a ideia do onírico como protagonista do seu enredo. E não só isso, é claro: ambos, Paprika e A Origem, trazem elementos em comum: a imersão na mente alheia, ilusão da noção de realidade, e, não menos importante, a existência de um mecanismo que permite o acesso ao mundo dos sonhos.
Apesar disso, esse texto não tem como objetivo criticar a obra de Nolan e nem apontar infames ou prováveis referências utilizadas, mas sim analisar as potenciais dicotomias presentes na narrativa e ainda refletir: há limites para a mente humana no que tange os processos de criação e percepção?
Antes de tudo, é preciso explicar que o enredo de Paprika (2006) foca em um grupo de cientistas, pesquisadores e terapeutas que desenvolvem um dispositivo – o Capturador de Sonhos, ou DC Mini – que permite a entrada e a observação dos sonhos de alguns pacientes, a fim de solucionar, entender e explicar muitas questões relacionadas à própria mente e a interferência na vida real. A problemática começa quando um desses dispositivos é roubado, fazendo com que a pessoa que o pegou consiga manipular indivíduos, que podem perder a noção da realidade e enlouquecer. Para solucionar estes casos, a Dra. Atsuko Chiba, uma terapeuta, acessa a mente das pessoas envolvidas a fim de solucionar o problema, assumindo seu alter-ego: Paprika.
Exposição ou limitação
Para além do que vai o debate ético sobre ter a liberdade de invadir e futricar a cabeça de outras pessoas, a narrativa brinca com o conceito de oposição interior-exterior o tempo inteiro, explorando a discrepância entre as personalidades da doutora Chiba, uma mulher séria, indiferente, que não expressa muitas emoções e sentimentos ao longo da trama, com a de Paprika, a heroína extrovertida, vibrante e descolada presente no País das Maravilhas – o inconsciente.
Assistindo ao filme, essas noções de opostos são bem exemplificadas, mas não deixam de se sobrepor na abordagem. É claro, temos a noção de que Paprika e Atsuko são bem diferentes, mas a própria narrativa não deixa esse fato exposto logo no início. Há um propósito na transposição dessas ideias que não se limita somente à personalidade da protagonista Atsuko, mas que permeia em todo enredo: Nossos sonhos não são lineares, e nem, muito menos, preto ou branco.
Paprika revela o inconsciente oculto de Atsuko Chiba, trazendo para o espectador versões do que somos ou conseguimos ser no exterior e de como somos no interior, ou, pelo menos, como gostaríamos de ser.
Sonho ou realidade
Para além disso, ainda há uma outra visão, que também cobre noções do que é real e do que é “não-real” como partes não distintas, mas complementares de um mesmo universo. Ou melhor, a versão que nos ajuda a enxergar a “não-realidade” não como algo que não exista, mas que não está transposta diretamente no mundo consciente.
A própria imersão nos cenários da narrativa ajuda a explicar a ambiguidade. Em dados momentos, é difícil distinguir se a aventura faz parte da realidade que os personagens estão enfrentando, ou se ocorre dentro da mente de algum indivíduo, fazendo o público duvidar se aquilo é parte da ilusão.
O ritmo rápido, animação detalhada e surrealista, intensa no que beira um perfeito thriller, dão à história a intencionalidade confusa que é tão característica do mundo dos sonhos.
Feita essa conexão, entende-se que este novo mundo permite não somente sermos e criarmos novas possibilidades baseadas em nossos desejos, carências e dúvidas, mas também, interpretar a imensidade do conceito de identidade e experiência “além” do que pode nos ser exposto conscientemente. Afinal, se nada acontece fora desse universo e, seguindo a ideia mencionada no próprio roteiro, se não há limites além do corpo físico, por que não permitir?
Humano e máquina
Ainda há uma relação que ficou mais clara em minha experiência de Paprika. Ao longo deste texto, foram apresentados conceitos que convergem, de certa forma, a um ponto em comum: a universalidade de um dado ser, ou objeto. Mas, e quando o humano já é apresentado sem essas duas camadas de análise?
No que trata a parte de ficção-científica da premissa, o processo de entendimento e uso do DC Mini é bastante coerente e coeso, e os objetivos se mostram consistentes do início ao fim do longa, por meio do enredo que acompanha o detetive Konakawa Toshimi.
O filme se inicia com Toshimi realizando uma sessão de terapia nada convencional com Paprika, na qual nos é apresentada algumas de suas fraquezas e problemas dos quais ele busca pela resposta (daí, inclusive, parte o debate ético). Contudo, conforme as problemáticas ocorrem e a trama passa a girar em solucionar o caso de quem havia roubado o dispositivo, nota-se que não há tanto distanciamento – ou separação – do detetive como investigador, tanto como paciente dessa abordagem terapêutica.
Enquanto as facetas de Paprika/Chiba e Realidade/Sonho permitem um olhar abstrato sobre a divisão e fusão de duas partes, a figura do detetive representa um inteiro que é mais nítido e humano, pois sua existência, apesar de também transitar entre o mundo real e um mundo fantasioso, permanece quase fixa desde o início da narrativa, inerente à profundidade apresentada dentre os outros conceitos, afinal, ela é explícita – e quase ordinária.
Na medida em que o enredo fantástico do filme buscava solucionar os problemas de quem havia roubado o Capturador de Sonhos e o estivesse utilizando como arma e dominação, em outro momento, Paprika é capaz de mergulhar na mente de Toshimi apresentando a solução dos seus questionamentos e libertação de um trauma de longa data – E a história também se encerra com ele.
Considerações finais
Numa atmosfera na qual a expansão do imaginário é tão bem retratada, o trabalho final de Satoshi Kon nos permite adentrar em um universo animado em que a essência quase psicodélica da nossa mente e criatividade são transformadas em algo tangível, ou que pelo menos pode ser visto. Assim como na narrativa, Kon também utiliza de mecanismos para expor o que é ou não parte do consciente, explorando as possibilidades da criação e fazendo Paprika (2006) ser entendido, também, como uma ode metalinguística ao próprio cinema.













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