CRÍTICA | Nimona é um grito de resistência para todos os rejeitados
- Artur Soares
- 6 de mar. de 2024
- 7 min de leitura
Atualizado: 8 de jun. de 2024

O fim da Blue Sky Studios foi um golpe que pegou a todos de surpresa em 2021. Por mais que tenha MUITOS lançamentos questionáveis, o estúdio foi responsável por clássicos infantis, como A Era do Gelo e a franquia Rio. Depois da Disney anunciar o encerramento da divisão em 2021, ainda havia alguns projetos inacabados. Dentre eles, estava o último filme da companhia, intitulado Nimona.
Baseado em quadrinhos do mesmo nome, o longa conta a história de um cavaleiro acusado de assassinato e que, para provar sua inocência, precisa se unir a uma adolescente capaz de se transformar em qualquer ser vivo. O personagem principal vive um romance gay, além de toda a trama conter uma mensagem sobre aceitar as diferenças. Com base no histórico da Disney, era óbvio que a animação não seria aceita.
A empresa do rato decidiu vender o projeto — que estava quase concluído — para a Netflix. O resultado dessa história? Hoje, Nimona está entre os concorrentes ao Oscar de Melhor Animação, sendo um tapa na cara daqueles que um dia o rejeitaram. Desde sua produção a obra carrega consigo uma mensagem sobre rejeição e isso vai se estender até em seu enredo.
Rejeição com pinceladas de anarquismo
A trama de Nimona se desenrola em um reino cego pela intolerância. Esse extremismo teve origem na lenda de Gloreth, uma honrada cavaleira que foi responsável por salvar o povo e eliminar os monstros. Buscando honrar a história de Gloreth, a população cria uma espécie de paranoia sobre monstros. Qualquer coisa que possa ser considerada um monstro deve ser instantaneamente eliminada.

O grande cerne do roteiro de Nimona é o quão nocivo podem ser julgamentos precipitados. Durante toda a trama é representado o quão cruel é a crença de querer destruir a existência de outro ser apenas por ser diferente. Embora seja ambientado em um mundo de fortes influências medievais, fica nítido que a obra estabelece fortes paralelos com o mundo atual.
O principal deles é a maneira como a população se apega a uma crença antiga para justificar seu preconceito. Nos últimos anos, foi possível presenciar uma ascensão de pessoas que utilizavam suas crenças como uma forma de justificativa para seu ódio. Por apresentar uma releitura tão atual da realidade, a animação carrega um forte teor político.
Embora alguns possam considerar isso como “lacração”, a obra está longe de ser uma espécie de propaganda política sem conteúdo. Os personagens são bem desenvolvidos, a história apresenta um mundo interessante e a mensagem sobre ser rejeitado consegue alcançar até mesmo pessoas que não fazem parte da comunidade LGBT.

Além do debate sobre aceitação, o filme também apresenta fortes críticas ao modelo atual de nossa sociedade. Não coincidentemente, ao final dos créditos a personagem principal desenha o símbolo do anarquismo dentro de um coração. Durante toda a narrativa, Nimona apresenta características anárquicas, ao ponto de a todo momento ela querer perturbar a ordem vigente.
Não que a animação seja uma forma de defender a abolição da democracia, mas ela utiliza um personagem extremamente caótico como forma de demonstrar os problemas enfrentados pelas convenções sociais que seguimos atualmente. O preconceito ainda está enraizado em grande parte da população e essa maioria é quem acaba decidindo o destino do país. Mesmo que não seja através de uma revolução, o mundo precisa passar por mudanças e logo.
A excelência na identidade visual
Um dos aspectos mais notáveis em Nimona é sua excelência visual. A produção consegue ter um estilo de animação único que relembra os quadrinhos nos quais foi inspirado. Apesar de ser 3D, o longa mistura técnicas de animação que lembram Homem-Aranha: Através do Aranhaverso e Gato de Botas 2. O filme consegue passar um aspecto similar de uma aquarela, com uma paleta de cores puxada mais para o tom pastel.

Outro ponto que merece destaque é a maneira como o mundo é construído. A aventura se desenrola em um reino que mistura a estética medieval com avanço tecnológico. Essa mistura inusitada acaba gerando uma ambientação muito rica e interessante, que reúne conceitos como um esquadrão de cavaleiros e sistema de metrô.
A junção do antigo com o futurista lembra bastante a estética do Space Western, apresentando em obras como Cowboy Bebop, em que existe a mistura do espaço com a ambientação do Velho Oeste. Além de bem original, o mundo apresentando em Nimona parece ser bem vasto.
Quais criaturas mágicas existem além de Nimona? O que há além das muralhas? Até onde se estende o poder da magia? Essas são algumas perguntas que não são respondidas e que até nem precisam ser respondidas para a narrativa funcionar, mas que acabariam gerando um bom spin-off ou continuação.

Por fim, ainda falando sobre escolhas visuais, o design dos personagens também chama atenção. Apesar de serem levemente diferentes do material original, a produção executa um ótimo trabalho no que diz respeito a manter a essência de cada um ao mesmo tempo que cria algo único e memorável.
O destaque fica para o visual de Ballister, que brinca com o fato dele ser taxado como um vilão. O personagem é o único que segue uma paleta de cores escura, com uma armadura completamente preta, o que normalmente é associado a personagens vilanescos.
O GRANDE problema dessa história
Apesar de ser muito louvável por sua narrativa ousada e coragem para falar sobre a representativa, Nimona apresenta um grande erro em seu enredo e isso coloca em xeque toda a mensagem que o longa tenta transmitir. No terceiro ato da animação, depois que se separa de Ballister, Nimona acaba sendo consumida pelos sentimentos negativos e se transforma numa criatura gigante que leva destruição por onde passa.

Em resumo, todo o receio que os cidadãos tinham com ela e as acusações da personagem ser uma possível ameaça se concretizaram como reais. O longa passa todo o seu tempo tentando demonstrar o quão negativo são os julgamentos precipitados, que não devemos demonizar alguém por ser diferente e que todos merecem amor, para no final mostrar que as pessoas intolerantes realmente tinham uma certa razão.
Mas no filme mostra que ela assumiu essa forma porque estava prestes a cometer um suicídio
É verdade. Inclusive, a cena em que o Ballister a impede de se matar é muito emocionante. Mas isso não muda o fato dela ter causado a destruição por onde passou e, possivelmente, ter acabado com algumas vidas durante esse caos. Toda a mensagem sobre aceitação cai por terra ao perceber que a protagonista podia realmente destruir a todos caso não mantenha o controle sobre suas próprias emoções.
Mas todos esquecem isso logo em seguida, porque a garota se sacrifica para salvar todo mundo da ameaça da diretora. Porém, se voltarmos um pouco dentro do roteiro, é notável que a diretora só estava prestes a atirar na população porque Nimona havia se transformado numa criatura gigante. Ou seja, no fim das contas, a protagonista só encerrou um problema que ela mesmo começou.

E se isso não fosse suficiente, o roteiro ainda se mostra extremamente apressado nesse último ato. Uma população que passou a VIDA inteira odiando aquilo que considerava monstros simplesmente passa a amar a Nimona por conta de UM ato que ela fez — que era resolvendo uma situação que ela mesmo iniciou. Essa mudança é tão abrupta que beira o artificial.
Um caminho mais correto que a narrativa poderia ter seguido seria mostrar que, aos poucos, as pessoas estavam deixando seu preconceito de lado. Além disso, era necessário que mesmo com seu sacrifício, ainda havia algumas pessoas que mantinham seu pensamento retrógrado. As pessoas não mudam suas crenças em coisas fúteis da noite para o dia, imagina um dogma o qual seguiram a vida inteira.
Uma mensagem de identificação para todos
Como já foi mencionado, as mensagens que o longa apresenta vão além da representatividade LGBT. A trama de Nimona é sobre rejeição e isso já começa na história por trás do projeto da Blue Sky. A animação é sobre todos aqueles que um dia foram excluídos, maltratados e desconsiderados apenas por serem diferentes.
A parte que considero mais bonita na obra é o modo como o roteiro faz questão de mostrar que, apesar de você não ter controle sobre o que as pessoas acham de você, você sempre terá o controle de quem é. No fim, nunca é tarde para mostrar que você pode ser muito mais do que os outros pensam de você e esse poder de transformação é a prova de que todos merecem uma segunda chance — até o cavaleiro babaca que no final se mostra alguém diferente e arrependido.

A primeira vez que assisti esse filme foi ao lado de alguém especial e com a qual não tenho mais contato. Olhando em retrospectiva, eu me transformei numa pessoa completamente diferente do que era naquela época, tanto no externo quanto no interno. E se existe uma coisa que Nimona me ensinou é que todo mundo consegue mudar aquilo que é, mesmo que as pessoas não tenham uma boa visão sobre você. Por conta disso, desenvolvi uma relação muito especial com o filme e é uma obra que com certeza levarei com carinho no coração.
Veredito
Nimona é o último respiro da falecida Blue Sky. Dando adeus como um verdadeiro rockstar, o estúdio realiza uma épica despedida entregando o seu melhor trabalho. Com uma animação única, personagens que possuem muita química entre si e mensagens extremamente importantes para o contexto social atual, a animação é uma opção imperdível no catálogo da Netflix.

Apesar de dificilmente estar levando a estatueta para casa, Nimona já provou para todos o seu valor. O filme conseguiu construir um lindo paralelo entre sua trama na tela e sua trajetória na vida real. Nascendo como um projeto rejeitado de um estúdio que fechou as portas para chegar ao nível de concorrer ao Oscar.
Ele comete alguns deslizes na construção do roteiro, principalmente no que diz respeito ao seu terceiro ato. A maneira como as pessoas mudam de opinião facilmente sobre algo que acreditaram a vida toda, aliado a falta de desenvolvimento da vilã e suas motivações, faz com que o público termine a experiência com um gosto de algo que foi feito às pressas.
Mesmo assim, a estética criativa, o bom humor e a química do elenco fazem com que a animação termine com um saldo muito positivo. A obra me impactou muito positivamente e o carinho que tenho por ela só cresceu com o passar do tempo. A obra se estabelece como uma prova para a Disney de que é possível fazer uma representação LGBT bem feita e ainda assim conquistar o carinho do grande público.
Nota: 4/5
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