CRÍTICA | Assassinos da Lua das Flores é uma obra-prima extremamente relevante
- Roger Caroso

- 19 de out. de 2023
- 7 min de leitura
Atualizado: 8 de jun. de 2024

Aos 80 anos, Martin Scorsese continua inacreditável e faz o que sabe de melhor, se reinventar. Nessas quase 6 décadas de carreira, o mestre soube apresentar e desenvolver os mais variados temas, das mais diversas formas, e aqui não é diferente. Ele sabe o poder que têm e sabe a relevância que sua obra pode levar a um assunto tão fundamental, mas que havia sido sublimado dos holofotes. Martin Scorsese abre as portas para que o mundo possa enxergar novamente a Nação Osage.
O longa é baseado no livro "Assassinos da Lua das Flores: Petróleo, morte e a Criação do FBI", escrito pelo jornalista David Grann. Nele, é abordado o caso de quando uma série de assassinatos extremamente suspeitos ocorreram na comunidade nativa do povo Osage, no estado de Oklahoma. Essa população chegou a ser considerada como dona da maior renda per capita do planeta, visto o arrendamento do governo norte-americano perante suas terras ricas em petróleo.
A Nação Osage se estabelece aos arredores do Rio Osage, um afluente na confluência dos Rios Mississippi e Missouri durante o século XVII. Osage não é nomenclatura original dessa população, mas sim 𐓏𐒰𐓓𐒰𐓓𐒷 (Wazhazhe), que significa "Filhos das águas médias", devido à proximidade com os rios. Com os contatos iniciais com os colonizadores franceses que ocuparam a região, os Wazhazhe começaram a ser chamados de Ouazhigi, além de terem sido catequizados.

Em 1825, anos após a independência dos Estados Unidos e da compra dos territórios franceses na região, os Osage foram "realocados” pelo governo federal para o Kansas, deixando suas terras no Missouri, Arkansas e Oklahoma. Após a Guerra Civil (1870), os Osage venderam suas terras atuais para o Estado e compraram um novo espaço, que desde então é conhecido como Reserva Osage, no Oklahoma. Anos mais tarde, em 1897, é descoberto que esse local possuía abundantes reservas de petróleo, que teve sua exploração arrendada pelos EUA, assim gerando uma porcentagem de lucro para toda a população original.
Com todo esse petróleo a ser explorado e o rápido enriquecimento dos Osage, milhares de homens brancos foram atraídos para a região, seja para trabalhar de forma honesta, seja para se aproveitar e roubar suas fortunas. Essas pessoas acreditavam que a riqueza dos Osage era injusta, pois haviam herdado ao invés de terem trabalhado duro, um traço claro de racismo e inveja, visto que diversos brancos eram subalternos dos nativos. Em um sentimento de superioridade racial, eles acreditavam que os Osage não sabiam a forma correta de administrar seu dinheiro. Assim, o Governo Federal instituiu que eles necessitavam de um tutor nomeado pelo Estado para cuidar das suas finanças.
Durante um período de 10 anos, em torno de 60 indígenas ricos foram assassinados de formas extremamente suspeitas, como envenenamentos, doenças misteriosas e suicídios. Essa época foi conhecida como "Reino do Terror". As mortes aconteciam como meio do repasse dos bens dessas pessoas, por exemplo: Um homem branco conquistava uma mulher Osage riquíssima, se casava com ela e participava de planos para o óbito de seus familiares, então as posses chegavam nele. Os casos não possuíam investigações ou resoluções, devido a conivência das autoridades, até que os próprios Osage foram atrás das autoridades, se reunindo com o presidente Calvin Coolidge e a partir daí o recém criado, Bureau of Investigation (hoje FBI) foi posto para investigar os casos.

No longa, no acompanhamos Ernest Burkhart (Leonardo DiCaprio), um homem que foi cozinheiro durante a Primeira Guerra Mundial e que foi trabalhar na Reserva Osage, pois seu tio William King Hale (Robert De Niro), era uma pessoa rica e muito influente na região. Em pouco tempo, Burkhart desenvolve uma relação muito próxima com Mollie Kyle (Lily Gladstone), uma Osage de linhagem pura e riquíssima. Os assassinatos e conspirações vão aumentando a cada dia, gerando um grande temor de toda população da região.
Somos apresentados pelo ponto de vista dos intrusos, os homens brancos que foram às terras Osage para roubar as riquezas e exterminar a população. Scorsese entende muito bem que seu lugar de fala não é ao lado da população que sofreu esse massacre, mas sim de alguém que tem o nome e disposição para jogar os holofotes nessa situação que foi esquecida por muitos e teve resoluções incompletas. Seu posicionamento é certeiro e aberto para debates, pois sabe que seu longa só representa uma pequena fração de todo esse universo de questões históricas, sociais e criminais.
Por se tratar de um caso tão sério, complexo e cheio de nuances, era possível que sua narrativa acabasse se tornando truncada, demorada e cansativa, ainda mais se tratando de 3 horas e 22 minutos de filme, mas definitivamente não é o caso. Scorsese conduz o ritmo de forma maestral, sem deixar nunca a peteca cair, sabendo balancear os pontos de interesse da trama para nos manter constantemente intrigados. Seus personagens principais dão cadência e gosto de assistir, fazendo com que o espectador mergulhe para dentro desse microcosmo.

DiCaprio entrega como de costume uma grande atuação, que possui mais camadas do que aparenta. Contudo, acredito que o ponto de maior relevância seja que neste filme ele é um peão, um personagem manipulado, não o grande manipulador como ele se acostumou a interpretar. Mostrando uma versatilidade maravilhosa e podendo abordar outras áreas de seu talento, nesse caso, um personagem dubiamente engraçado e perverso. Inicialmente ele seria o agente do FBI, Tom White, papel que posteriormente acabou indo para Jesse Plemons, já que DiCaprio viu mais potencial neste peão não muito esperto.
Robert De Niro é uma força da natureza (acredito que todos já saibam disso), um dos maiores (senão o maior) atores de todos os tempos e aqui entrega mais uma atuação genial. Sendo esse o seu 10° filme com o amigo de longa data Scorsese, sua interpretação como William King Hale entra para o hall dos grandes personagens do De Niro nos filmes de Marty, como Travis Bickle em Taxi Driver, Jimmy Conway em Bons Companheiros e Max Cady em Cabo do Medo, Jake LaMotta em Touro Indomável e Rupert Pupkin em O Rei da Comédia. Melhor coadjuvante do ano (na minha visão), deve brigar de frente com Robert Downey Jr. No Oscar.
Lily Gladstone, uma atriz de ascendência indígena, é a grande novidade do filme. Uma atriz que até então não tinha tido grandes oportunidades ou papéis de muito destaque e até cogitou abandonar a carreira com apenas 37 anos, mas aqui entrega uma performance memorável. Trabalhando perfeitamente as pequenas sutilezas e detalhes de sua personagem, seus conflitos internos, dramas pessoais e todo sofrimento familiar. Além de uma atuação física brilhante, agora é só aguardar as premiações, por que ela merece.
A participação de Jesse Plemons é um pouco menor do que eu esperava, mas ele consegue transmitir a imponência e importância de seu personagem nesse conflito. O elenco complementar também não deixa nada a desejar, personagens que mesmo tendo menos tempo de tela, mas que seus intérpretes entregam grandes trabalhos. Tantoo Cardinal e Cara Jade Myers, como mãe e irmã de Mollie, respectivamente, o cínico e sádico Kelsie Morrison interpretado por Louis Cancelmi e uma participação especial maravilhosa de Brendan Fraser.

O trabalho técnico em "Assassinos da Lua das Flores" é primoroso, algo já esperado quando se trata de Martin Scorsese e seus colaboradores. Ao seu lado, o grande Eric Roth assina o roteiro, que é um dos grandes do ano e com certeza estará figurando nas listas de fim de ano e muito provavelmente no Oscar de Melhor Roteiro Adaptado. A mais clássica companhia de Scorsese é a editora Thelma Schoonmaker, este sendo seu 21° longa ao lado de Marty, e mais uma vez é um trabalho certeiro, com um cinismo e ironia ímpares.
Rodrigo Prieto tem seu quarto filme seguido sendo diretor de fotografia do Scorsese e é um show a parte. Suas composições visuais engrandecem demais o longa, ajudando a contar sua história desde os primeiros segundos, uma belíssima exploração das paisagens do meio oeste americano, não é atoa que seja um dos principais nomes em sua função atualmente. Ao seu lado, as composições visuais só são completas graças ao grande design de produção, que nos leva perfeitamente para aquele pedaço nativo americano da década de 1920, engrandecendo a imersão.

Neste segmento, gostaria de prestar uma singela homenagem póstuma ao lendário Robbie Robertson. Guitarrista e compositor principal da histórica The Band, Robertson se aventurou no cinema após o filme de sua banda. Inicialmente compondo músicas adicionais para "Touro Indomável". Em seguida continuou os trabalhos com Scorsese, compondo as trilhas de "O Rei da Comédia" e "A Cor do Dinheiro". Nas décadas subsequentes, ele se estabeleceu como colaborador constante do diretor, ajudando como produtor, consultor e supervisor musical de boa parte de seus filmes.
Após 36 anos, ele voltou a compor uma trilha para um filme de Scorsese com "O Irlandês", que possui um excelente trabalho musical. Mas o melhor estava por vir, Robertson retornou para "Assassino da Lua das Flores" e entregou uma obra belíssima, delicada e certeira, uma trilha realmente fantástica e bem calculada, um acréscimo maravilhoso ao longa. Infelizmente Robbie nos deixou em agosto deste ano, após uma batalha contra um câncer de próstata, sem ter conseguido ver o lançamento do filme. Termino com uma frase de Robertson sobre Scorsese:
"Ele é um musicista frustrado, e eu acho que sou um cineasta frustrado. Então foi uma conexão perfeita"

Martin Scorsese é um dos maiores cineastas não só vivos, mas de todos os tempos, e definitivamente temos de aproveitar enquanto ele ainda está na ativa. Filme após filme ele continua entregando obras ricas e complexas, seja de forma íntima como em "Silêncio", de forma reflexiva sobre sua carreira em "O Irlandês" ou em tom de denúncia aqui em "Assassinos da Lua das Flores".
É louvável que nesse ponto em sua carreira não exista mais nada a ser conquistado de forma pessoal, então usar o seu poder e nome para uma causa como essa é muito bom. Possibilitando que portas futuras sejam abertas para pessoas de origem Osage possam trazer a sua visão de dentro para fora de toda essa questão. A relevância desse filme é muito maior do que nos quesitos narrativos ou técnicos (mesmo que esses aqui sejam impecáveis), sua relevância é histórica, social e cultural. Para terminar, uma frase dita no filme que ilustra bem o que ocorre na sociedade.
"É mais fácil ser condenado por chutar um cachorro do que por matar um indígena"
Nota: 5/5








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