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CRÍTICA | A Sociedade da Neve mostra que até no inferno existe esperança

Atualizado: 8 de jun. de 2024


13 de outubro de 1972. Um avião da força aérea uruguaia fretado por uma equipe de rugby colidiu contra uma montanha enquanto sobrevoava a Cordilheira dos Andes. Haviam 40 passageiros a bordo e 5 tripulantes. Depois de 72 dias sobrevivendo ao frio extremo, exaustão física e escassez de recursos, apenas 16 pessoas foram encontradas com vida.  O que chocou a todos na época foi que, em um ato desesperado para continuar vivos, os sobreviventes se viram obrigados a consumir a carne das vítimas da tragédia. 


A atitude foi alvo de críticas na época, dividindo o público entre quem entendia as circunstâncias e aqueles que repudiam a decisão. O uso do canibalismo como último recurso foi o que tornou essa história tão lembrada e hoje ela é considerada por muitos como o símbolo de até onde vai a resiliência humana. Em 1993, essa história ganhou sua primeira adaptação em longa metragem com o lançamento de “Vivos”, do diretor Frank Marshall.


Apesar de ser considerado um bom filme, essa foi uma interpretação hollywoodiana do acidente envolvendo o time Old Christians Club. Pensando nisso, o diretor Juan Antonio Bayona decidiu retratar a perspectiva uruguaia sobre essa legítima história de terror da vida real. Baseado em um livro de mesmo nome, o grande diferencial que “A Sociedade da Neve” propõe é a participação dos sobreviventes na produção, além de uma exposição mais “crua” do que aconteceu durante aqueles dois meses presos no inferno congelado.


Retratando a realidade de forma crua


Em seu mais recente trabalho, Bayona consegue retratar de forma fria, crua e realista o quão brutal é um acidente de avião. O momento da colisão é uma cena que consegue despertar aflição em qualquer um. é possível ver o quão rápido e doloroso foi o impacto para aqueles que sobreviveram. A desorientação, o medo, a dor. Todos esses sentimentos são representados por aqueles que tiveram a “sorte” de sair com vida.


Sociedade da Neve Foto 1
Foto: Reprodução/ Netflix

Esse sentimento de aflição perdura durante todas as 2h24m de filme. Embora pareça desnecessária à primeira vista, essa longa minutagem e ritmo mais lento é fundamental para aflorar o sentimento de desconforto naquele que assiste. Além disso, os mais dispostos a refletir sobre toda a experiência podem se ver questionando o fato de estarem reclamando de uma mera minutagem enquanto presenciam a história de pessoas que precisam cometer canibalismo apenas para sobreviver.


Todavia, não é apenas na montagem que o filme trabalha esse tipo de sentimento negativo. Durante toda a narrativa, é retratada com frieza as consequências de estar exposto a aquele contexto dos personagens. Além das pessoas que acabaram sofrendo algum tipo de ferimento, os sobreviventes ainda precisam lidar com o frio constante e a falta de comida. Nesse ponto, o público se torna tão imerso na situação que a impressão que fica é a de que, a qualquer momento, todos irão morrer.


Aqui entra uma das categorias pela qual A Sociedade da Neve está disputando no Oscar. A produção apresenta um excelente trabalho na maquiagem e transformação do elenco. O efeito do frio e da fome é muito realista. A cena mais impactante está próxima ao final, quando é revelado os corpos esqueléticos dos sobreviventes, que deixam a dúvida de como aquelas pessoas conseguiram passar tanto tempo vivas mesmo enfrentando a desnutrição.


SOciedade da Neve Foto 2
Foto: Reprodução/ Netflix

O diretor consegue representar com exímio o quão brutal pode ser o inferno congelado da Cordilheira dos Andes. Bayona brinca a todo momento com a ideia de esperança e expectativa. Ao ouvir um barulho de algo se movendo e alimentando a esperança de que a ajuda finalmente teria chegado, os telespectadores são surpreendidos com mais um problema: avalanche. 


Como se tudo não estivesse ruim o suficiente, a trama nos mostra que sempre existe um espaço para piorar. Dessa forma somos levados numa eterna montanha russa que apenas desce, ao ponto de que os personagens são constantemente expostos a novos problemas e quase nunca a uma solução. A virada de chave na história demora para acontecer, mas quando ocorre a sensação de alívio é quase instantânea.


Cada componente é essencial


O filme não perde nem sequer meia hora para mostrar o momento do infeliz acidente. Porém, nesse curto período de apresentação dos personagens, já é estabelecido o tipo de relação que eles cultivavam. Todos eram amigos próximos prestes a realizar o sonho de viajar. Além do próprio time em si, também estavam no avião alguns convidados, sejam eles amigos ou parentes dos jogadores. Parafraseando o próprio Numa, apesar da maioria não se conhecer, havia um clima familiar.


Soceidade da Neve Foto 3
Foto: Reprodução/ Netflix

Essa construção se torna importante a medida da estrutura que o longa vai seguir. Normalmente, em filmes sobre histórias de sobreviventes, a trama costuma acompanhar um só personagem que será responsável por realizar um grande feito, o que por sua vez acaba lhe garantindo a oportunidade de viver. Apesar de Numa Turcatti exercer o papel de protagonista na maior parte do tempo, “A Sociedade da Neve” deixa claro que essa é a história de um grupo de sobreviventes e não de apenas um.


Depois da queda do avião, cada pessoa presente ali tenta auxiliar o grupo de alguma forma. Seja na melhoria do local onde eles estavam abrigados, no cuidado com os doentes ou na exploração do ambiente hostil em que eles haviam pousado. Essa divisão de tarefas ganha um tom um tanto pesado quando três garotos se voluntariam para serem responsáveis por selecionar e cortar os mortos, visando que o resto dos tripulantes não precisassem saber de quem era a carne que estavam consumindo.


Inevitavelmente alguns personagens não recebem tanto foco quanto outros, porém, todas as vítimas são tratadas de forma extremamente humana. Um dos recursos usados pelo diretor que ressalta essa sensibilidade é o fato dele informar o nome completo e idade da pessoa sempre que ocorre alguma morte. Não só isso, como até mesmo os personagens de menos destaque conseguem ter suas personalidades e subtramas desenvolvidas.


Sociedade da Neve Foto 4
Foto: Reprodução/ Netflix

Um exemplo disso é o único casal presente no avião. Apesar deles não desenvolverem um papel fundamental em como o grupo sobreviveu, a produção dedica um pouco de tempo para aprofundar os dois. Esse tipo de atenção é muito importante para o aumento do peso sobre a decisão de canibalismo. Quando é apresentada a ideia de consumir o corpo das vítimas, é nítido o quão desesperador isso é para as pessoas que estão ali, dado que o filme fez questão de desenvolver cada um previamente.


Não só isso, mas as camadas de cada personagem também são colocadas à prova diante os embates morais que eles enfrentam durante sua jornada de sobrevivência. Muito dos jovens presentes no avião eram fiéis ao catolicismo, o que fez com que eles ficassem diante do dilema entre morrer de fome ou, possivelmente, cometer um ato profano do qual nem Deus iria perdoá-los. 


É muito interessante como a fé vai ganhando espaço na narrativa, se tornando aos poucos um dos elementos centrais do enredo. Cada personagem entrou no avião acreditando em algo e, os que conseguiram sobreviver, saíram acreditando em coisas diferentes. Apesar disso, uma constante durante toda essa jornada é a fé de que um dia, por mais improvável que fosse, eles voltariam a reencontrar seus familiares fora daquela geleira.


Um milagre? Para quem?


Filmes sobre tragédias reais costumam ser associados a mensagens sobre superação, resiliência  e resistência. De forma geral, essas obras costumam servir de material para despertar inspiração naqueles que assistem. Porém, com “A Sociedade da Neve’ é diferente. Embora a produção possua todos os itens da lista, ele não retrata nem de longe uma história feliz de superação.


Sociedade da Neve Footo 5
Foto: Reprodução/ Netflix

Ao mencionar o acidente que aconteceu na Cordilheira dos Andes, normalmente costumam mencionar os nomes de Roberto Canessa e Fernando Parrado, os dois responsáveis por realizar a caminhada de 60 km que seria a peça chave para o resgate. Ao ler sobre a história, a maioria dos diretores provavelmente optariam por colocar um desses dois como o grande protagonista. O arco de “superação e inspiração” que todos esperam já estaria feito.


Todavia, Bayona não opta por esse caminho justamente por conseguir entender que essa não é uma história que deve ser lembrada com alegria. Foi uma tragédia e é assim que ela deve ser retratada. Ninguém que foi resgatado daquela montanha se sentiu gratificado ou abençoado por ter sido um dos poucos sobreviventes. Muito pelo contrário, ao finalmente conseguir sair daquele local, a única coisa que resta é a dúvida: por que eu?


Sociedade da Neve foto 6
Foto: Reprodução/ Netflix

É muito interessante como o filme aborda os questionamentos dos envolvidos no acidente sobre qual era o sentido daquilo tudo está acontecendo. Não existe uma história bonita da qual devemos usar como exemplo, mas uma tragédia que deve ser lembrada como uma prova do quão cruel pode ser a natureza. Não existem heróis, ícones ou lendas aqui. Apenas seres humanos tentando sobreviver.


Conclusão 


A Sociedade da Neve é um filme que consegue ser tão impactante quanto a história que ele busca adaptar. Com uma direção que não tem medo de ser brutal quando precisa, a experiência de assistir este grupo de jovens buscando a sobrevivência pode ser resumida em uma mistura de medo, angústia e agonia. O longa consegue, de forma extremamente natural, despertar um vislumbre do que seria estar naquela situação.


Sociedade da Neve Foto 7
Foto: Reprodução/ Netflix

Apostando em ângulos abertos para mostrar a grandiosidade da  Cordilheira dos Andes, a produção retrata o quão impiedoso pode ser aquele local. A vastidão do branco da neve sem sinal de vida alguma por perto nos desperta o pensamento de que aqueles presentes são meros intrusos na obra da mãe natureza e que logo logo ela vai se livrar dessas “visitas indesejadas”.


Um enorme acerto da produção é o tom sensível com o qual ele consegue tratar toda a situação. Embora seja visceral quando necessário, o diretor mostra um carinho e humanidade por todas as vítimas da tragédia, sejam elas as mortas ou as vivas. Ao final do longa, em vez da sensação de inspiração que esse tipo de obra costuma passar, o que Bayona nos deixa é o sentimento de terror e a certeza de que até no inferno a esperança é necessária.


Nota: 4,5/5



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