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CRÍTICA | Ainda Estou Aqui gera reflexões sobre a memória de um país manchado


Ainda Estou Aqui


Certa vez, durante um almoço, minha família assistia a um noticiário local. Naquele momento, a televisão mostrava pessoas pedindo ajuda para achar familiares que haviam desaparecido. Lembro-me bem de sentir a angústia em me imaginar na situação e também da afirmação de minha mãe. “Perder alguém é difícil, mas não fazer ideia do paradeiro de quem você ama é um fardo muito maior”.


Uma professora de português formulou essa frase e não deve nem lembrar de como ela marcou a vida de seu filho. Agora, novamente a frase volta a aparecer, mas a partir da boca de Fernanda Torres em "Ainda Estou Aqui", filme dirigido por Walter Salles que foi escolhido como representante do Brasil na disputa pelo Oscar 2025.


A trama se estabelece, inicialmente, no início dos anos 1970 no Brasil, período politicamente conturbado na história do país pela ditadura militar. Em meio a um contexto de repressão, censura e desaparecimento de milhares de pessoas, a vida de Eunice Paiva (Fernanda Torres) vira de cabeça para baixo quando seu marido, o ex-deputado Rubens Paiva (Selton Mello), é sequestrado por militares. Sem informações oficiais sobre o paradeiro do advogado e com cinco filhos para criar, a mulher precisa transformar a dor em resistência ao mesmo tempo em que inicia uma corrida própria pela verdade.


Marcelo Rubens Paiva e Ainda Estou Aqui
Foto: Divulgação/Renato Parada

O filme é uma adaptação do livro de mesmo nome, lançado em 2015 e escrito por Marcelo Rubens Paiva sobre a história de sua família após a perda de um familiar pelas mãos da ditadura. Se o lançamento da obra literária já havia alcançado certo reconhecimento com prêmios, o longa de Walter Salles deve levar a história não-ficcional a um público ainda maior, principalmente pelas escolhas artísticas em torno da produção.


A calmaria antes da tempestade


Ainda Estou Aqui
Foto: Divulgação/Sony Pictures

Um dos pontos altos da experiência é acompanhar o núcleo familiar interagindo entre si e gerando dinâmicas reconhecíveis ao público brasileiro. Mesmo com a diferença temporal, a conexão se constrói de forma muito pessoal com aqueles personagens. É dessa forma que o filme se inicia e toma longos minutos para construir uma relação íntima entre público e obra. 


Família, aliás, é uma palavra que define por completo a obra. Em todos os sentimentos que o substantivo possa evocar, tanto positivos quanto negativos. Ao mesmo tempo que ter uma família é receber carinho, afeto e conforto, perder quem amamos pode doer como um tiro no peito. Para alguns, essa perda se torna tão grande que se torna parte de quem ela é, uma amálgama indistinguível que atende por um nome. Nesse caso, Eunice.


Acompanhamos essa família, que é muito viva, do ponto mais íntimo possível. Isso, para prender a respiração quando, de um dia para o outro, Rubens Paiva é arrancado do conforto familiar para nunca mais voltar. A separação é crua, sem grandes despedidas ou uma frase memorável. O ex-deputado vai embora em seu carro, mas leva consigo um pedaço de cada um de sua família e amigos, mesmo que não percebam isso imediatamente.


Neste ponto da história, um grande destaque é a cenografia ao retratar o Rio de Janeiro do início da década de 1970. A praia, as roupas, as músicas e até o sentimento de viver foram retratados de uma forma singular. 


Dor e resistência


Ainda Estou Aqui
Foto: Divulgação/Sony Pictures

É a partir deste ponto que o roteiro centraliza a narrativa na figura de Eunice. A interpretação de Fernanda Torres conduz a personagem a lugares complexos. Ao mesmo tempo em que aquela mulher precisa cuidar de quem ficou, também precisa lidar com uma dor de uma situação indefinida. A fotografia ajuda na construção de todo o drama vivido pela personagem, indo de uma montagem com cores mais vivas e planos mais abertos a cenários escuros, com cores frias e uma sensação de enclausuramento, pertinente à narrativa.


Seja escondendo a verdade dos filhos, presa em um ambiente hostil ou dando prosseguimento à sua caçada, Fernanda Torres mistura sutileza em um mar de emoções que se entrelaçam na sua firme atuação, marcada por uma delicadeza que não deixa de contar com momentos efusivos. Quando explode, aliás, é perceptível a dor escapar através de um grito ou um choro. A própria atriz definiu a sua personagem como uma mulher que não queria sua família como uma vítima da ditadura. Ou seja, Eunice é o tipo de pessoa que busca alternativas para resolver um problema sem querer envolver outros. Nesse caso, suas filhas.


Além da protagonista, todo o elenco não deixa a desejar em nenhum momento com atuações sólidas, principalmente Selton Mello, Luiza Kosovski e Bárbara Luz. Sem contar com a estrela Fernanda Montenegro. Ela que, com apenas o olhar e em apenas uma cena, fechar o filme brilhantemente.


Tudo isso, aliado a uma direção rigorosamente aplicada na linguagem cinematográfica, arma uma experiência inquietante. Por falar em Walter Salles, a escolha em retratar o horror de um ponto de vista sutil causa ainda mais impacto para o drama. “Ainda Estou Aqui” torna-se um filme carregado de emoções. Em meio a um cenário de censura, a própria família se coloca em uma condição de silêncio que conduz a narrativa por uma grande parte da trama nos anos 1970. Afinal, muitas vezes é preciso prestar mais atenção no não dito para se entender as nuances do que está abaixo da superfície.


Ainda Estou Aqui
Foto: Acervo Pessoal

Assim como existem pessoas que viveram a ditadura e negam que foi um período manchado da história do Brasil, a história cria um sentimento parecido no espectador. Afinal, até um certo ponto da trama não há resquícios de que aquelas pessoas fossem ser marcadas para sempre. Até que só acontece, como com milhares de famílias brasileiras. Quando vem, fica, estacionado na pele de cada um, assim como uma ferida que não cicatriza.


Com todas as cartas em jogo, “Ainda Estou Aqui” confia na história e em sua protagonista para entregar um dos melhores filmes nacionais do século XXI e uma das melhores performances femininas do ano. A luta de Eunice agora está eternizada em mais uma mídia e serve para nos fazer rebobinar as fitas do passado, aprender com os erros e buscar medidas para lidar com o presente. Assim como disse Erasmo Carlos, é preciso dar um jeito, meu amigo. Descansar não adianta. Quando a gente se levanta, quanta coisa aconteceu…


Nota: 5/5



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