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CRÍTICA | Yõg ãtak: Meu Pai, Kaiowá é o registro da saudade

Yõg ãtak: Meu Pai, Kaiowá

Me envergonho em dizer que somente há pouco tempo descobri a potência do cinema indígena. 


Ano passado, tive a chance de conhecer produções indígenas no Cine Kurumin, o Festival de Cinema indígena que ocorreu em Salvador, em outubro, no Cineteatro 2 de Julho. Embora o meu repertório pessoal de filmes indígenas (ainda) não seja maior, posso afirmar que já me sinto melhor por conhecê-lo. 


Naquele dia, para além de alguns outros filmes, fui apresentada ao curta Wamã Mekarõ, um documentário minutos dirigido por Bemok Txucarramãe, que narra o início da trajetória de Kiabeti, um dos primeiros cineastas Kayapó. Foi o primeiro filme indígena que assisti, e, coincidentemente, em Yõg ãtak: Meu Pai, Kaiowá, reencontrei algo que se tornou muito reconhecível entre minha primeira e mais recente experiência: a força do olhar.


Salvo dizer: não é a mesma coisa! Quando falamos de cinema indígena, é importante temos em mente a noção de que durante muito tempo, a história de povos originários foi contada sob uma ótica colonialista – e, nesse espaço, o audiovisual acaba se impondo e se consolidando como uma poderosa ferramenta de reapropriação cultural, devolvendo o direito dessas pessoas a afirmarem e contarem, por si próprias, as suas histórias, e histórias de pouco mais de 300 povos que ainda existem e resistem no Brasil inteiro.


E uma dessas histórias foi a de Sueli e Maísa Maxakali, que, no filme documentário Yõg ãtak: Meu Pai, Kaiowá, narram a busca pelo pai, Luís Kaiowá, a quem perderam durante a ditadura militar, enquanto ainda eram bebês, e agora foi reencontrado após mais de quatro décadas. 


Yõg ãtak: Meu Pai, Kaiowá
Divulgação/Embaúba Filmes

Ressalto a interessante atmosfera de saudade que atravessa o filme. Melhor do que dizer “construção”, é dizer registro – porque esse sentimento não é artificial ou encenado. Yõg ãtak é íntimo, pessoal, mas, ao mesmo tempo, é coletivo. É a falta marcada pela memória, em meio às violências políticas que atravessaram (e seguem atravessando) povos originários Brasil adentro. Há ali o rastro de uma ditadura que matou, desfez famílias, corroeu vínculos – e há também a força de um reencontro que se entrelaça com a luta dos Tikmũ’ũn-Maxakali e Guarani-Kaiowá por seus territórios e modos de vida. 


No início do filme, somos apresentados à família de Sueli, também cineasta, também diretora desse longa, junto com o marido, Isael Maxakali – um a um, de filhos a netos, primos, cunhados, sobrinhos… a cada rosto, a tela se forma, que registra mais que uma geração ao espectador: é como um álbum vivo, a porta de entrada à cultura Maxakali, mas não somente, é o registro de quem quer mostrar também um legado ao distante pai. O título “Yõg ãtak”, inclusive, significa “meu pai” na língua maxakali. Ele revela a dupla face do filme, uma busca que é afetiva e, ao mesmo tempo, se demonstra como um gesto político de retorno às origens.


E nesse filme, a linguagem é também resistência. Aos poucos, mas visceralmente, somos imersos na cultura Maxakali: suas práticas, cantos e rituais atravessam a tela, criando uma experiência sensorial que rompe com a narrativa linear, ocidental. O filme é falado em maxakali, guarani kaiowá e português — e essa polifonia, junto à força dos cantos tradicionais, reforça a imersão. Mas tão importante quanto a palavra e o canto é o silêncio. Em muitos momentos, ele ocupa a cena quase como denúncia: o silêncio diante de uma placa que indica território retomado, a pausa desconfortável quando o assunto é a presença de soldados. O silêncio, aqui, também fala.


Yõg ãtak: Meu Pai, Kaiowá
Divulgação/Embaúba Filmes

Também é muito especial quando conhecemos Luiz, o pai de Sueli e Maiza, e também somos apresentados a uma outra perspectiva, das práticas e rituais do povo Kaiowá. Por trás das cenas apresentadas no filme, há uma série de mensagens, telefonemas e vídeos trocados entre os protagonistas que antecederam esse encontro. Em 2019, houve o primeiro contato em anos, já em 2022, quando o filme é gravado, uma delegação maxakali pode percorrer os mais de 1800 km de distância que separa a Aldeia-Escola-Floresta, onde vive Sueli, em Minas Gerais, das Terras Indígenas (TIs) Panambi-Lagoa Rica, Panambizinho e Laranjeira Ñanderu, em Mato Grosso do Sul, para descobrir o paradeiro do seu pai – hoje, um dos mais importantes xamãs de seu povo. 


Todo esse trajeto é muito representativo, uma vez que é um caminho de reparação, que costura lacunas abertas pela violência da ditadura e pela histórica tentativa de apagar existências indígenas. É o caminho de volta de uma história interrompida pela violência mas conseguiu ser reconstruída pelo afeto e pela memória. 


E nesse sentido, Yõg ãtak: Meu Pai, Kaiowá convida o público a refletir: assim como Sueli reinvidica o direito de se reconectar ao seu pai, o cinema indígena também necessita que nós, espectadores, nos conectamos a essas narrativas, que por muito tempo foram silenciadas ou distorcidas. Yõg Ãtak lembra de um cinema que é fruto de si mesmo, que ainda está longe do mainstream, mas toca quem reconhece essa origem, arrisco a dizer: é cinema brasileiro em pura nata.


Lançado no Festival de Brasília em 2024, Yõg ãtak recebeu o prêmio de Melhor Direção. Passou pela Mostra Ecofalante de Cinema Socioambiental, pela Mostra de Cinema de Tiradentes, pelo Festival de Documentários de Cachoeira — e segue ecoando como um dos expoentes do cinema indígena contemporâneo. Vale a pena conferir essa história.


Nota: 5/5



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